Mergulhado há meses nos arquivos com mais de 1 milhão de fotografias dos Diários Associados, acervo sob a guarda do IMS desde o segundo semestre de 2016, Cássio Loredano experimenta um misto de sofrimento e alívio na catalogação das imagens publicadas pelas editorias de Cidade dos jornais cariocas do grupo de Assis Chateaubriand. A dor das demolições de prédios históricos em nome do progresso se mistura ao regozijo do pesquisador com alguns projetos mirabolantes e devastadores que por falta de recursos – ou obra de Deus – não saíram do papel. Confira alguns desses momentos de tristeza com os feitos e satisfação com fracassos do crescimento urbano avassalador.
* Cássio Loredano
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Com que dor escreveria Sandra Alvim a palavra demolida - tantas dezenas de vezes em sua monumental Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro -, toda vez que trata da igreja de São Pedro dos Clérigos. "Traçado primoroso", diz ela, formado pela interseção de arcos de circunferência, resultado de "elevado grau de elaboração formal"; inestimável documento da incipiente independência e formação da identidade do mestre-de-obras brasileiro em relação à Metrópole, superando as "rígidas limitações estéticas lusas"; primeira igreja da colônia a ter cobertura em cúpula coroada por zimbório com lanternim. Demolida em 1944. Ficava na velha rua de São Pedro, igualmente atropelada pela abertura da avenida Presidente Vargas.
Dois anos antes, já tinham sido postas abaixo a pequenina ermida de São Domingos (1706, reconstruída em 1791) e a igreja do Bom Jesus do Calvário, de 1796, todas no caminho da violência poluente, inclemente, que vai da Candelária à Praça da Bandeira. "Demolidas em 1942", escreve a professora Sandra. Demolidas. As fotos são de cortar o coração.
Desastres concretizados e não concretizados
Henrique Dodsworth, foto de O Jornal de 15 de agosto de 1941, prefeito interventor do Distrito Federal, no ato de acionar a chave elétrica que detonou a implosão da chaminé da fábrica de tecidos Aliança. A empresa, que fora a maior fábrica do Brasil no século XIX, tinha fechado as portas em 1937. Ficava na antiga rua Aliança, rebatizada General Glicério, em Laranjeiras, onde se projetava construir um conjunto residencial a se chamar Cidade Jardim Laranjeiras. O nome não vingou, mas lá estão hoje os edifícios e as ruas que se abriram em torno, Belisário Távora, Stefan Zweig, Ortiz Monteiro, Cristóvão Barcelos, Estelita Lins, Luís Cantanhede etc. É uma dessas conhecidas ilhas de tranquilidade e silêncio do Rio, a dois passos do trânsito, da fornalha, do agito dos grandes eixos, no caso a rua das Laranjeiras. Mas atenção para o desenho do projeto. Há nele um túnel! Quer dizer, pretendeu-se fazer daquele remanso de sossego e vagar um inferno de poluição e barulho, lugar de passagem entre Laranjeiras e Botafogo. O túnel atravessaria a pedra entre os morros Mundo Novo e Dona Marta para ligar a General Glicério à rua Eduardo Guinle, do outro lado.
O inferno, aliás, os infernos se fizeram então pouco mais abaixo, o túnel Santa Bárbara, e pouco mais acima, o túnel Rebouças. O Santa Bárbara atropelou o encanto de um lugar encantador como já foi o Catumbi. Eis a foto do aviso de uma vitrine do bairro: "Vai abaixo - início das obras do túnel Catumbi-Laranjeiras". Que melancólico, que conformada impotência diante da pressa dessas caixas de aço sobre rodas, violentas.
E esta foto do lindo cenário de O Ateneu, de Raul Pompeia, o adorável Rio Comprido, a Paulo de Frontin sem o elevado que a deixou sinistra e degradada, com ao fundo o Corcovado sem Rebouças por debaixo e ainda sem Cristo por cima? É...
1919, Campeonato Sul-americano de futebol, final Brasil x Uruguai. Primeiro jogo, empate em 2 a 2. A segunda partida terminou também empatada, 0 a 0. Prorrogação: 0 a 0 ainda. Então, segunda prorrogação, imagine-se com que gravatas vermelhas à mostra, se os rapazes eram todos amadores. Importa é que Neco a certa altura avança e serve o couro a Friedenreich - que encaçapa. Primeiro grande título da Seleção em cinco anos de existência. As chuteiras de Fried foram levadas como estavam e ficaram uma semana expostas na vitrine de uma joalheria na rua do Ouvidor. E Pixinguinha celebrou a conquista com o choro 1 a 0, é pouco? Pois bem, cenário da gesta: o campo do Fluminense na esquina de Álvaro Chaves com rua Guanabara, atual Pinheiro Machado.
Mas quem se importa com memória quando se trata de grana? Quem quer saber do espaço em que Marcos Carneiro de Mendonça, Preguinho, Hércules, Romeu, Veludo, Castilho e Didi afinaram seus instrumentos? A diretoria do clube parece que não. O arquiteto Ulisses Burlamaqui tampouco. Os especuladores sim, se interessaram pelo espaço. Como terreno. E eis o monstro que quiseram levantar em cima do gramado, foto de O Jornal de 3 de abril de 1970. Para se ter ideia de proporções, a casinhola da frente na imagem acima é a bela sede da rua Álvaro Chaves, que seria preservada. A torcida sim é que tem carinho pelo passado do clube e foi muito possivelmente quem evitou que o dinheirismo lhe passasse a borracha na história.
Que foi que adiantou Lúcio Costa ter em 1970 emitido parecer contrário à construção de um hotel de 40 andares na avenida Atlântica (imagem acima), se cinco anos depois se iniciaram as obras do Othon e do Méridien?
Dessas passarelas horrorosas que quiseram botar em 1969 por cima da avenida Atlântica foi que escapamos.
Cássio Loredano é caricaturista e consultor do IMS.
(Com pesquisa de Andrea Wanderley)