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Rifle

18 de janeiro de 2018

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual.  Uma das fotos de Madalena Schwartz da série Transformistas (circa 1975) inspirou Lucrecia Zappi a escrever “Rifle.

Série “Transformistas”. São Paulo, circa 1975. Foto de Madalena Schwartz / Acervo IMS

 

As folhas envelhecidas estavam viradas na mesma direção, decerto porque quem deixou o livro no banco do vagão cansou de guardá-lo no bolso. Ou sei lá. Só peguei porque não tinha ninguém por perto, e um dos títulos me chamou a atenção. O caçador. Não lembro bem o nome do cara que escreveu porque não sou de ler, mas o conto era curto. Nem vi chegar a estação onde desço todos os dias. Mais tarde, voltando, pensava no livro, no caçador que se dizia o melhor do mundo, o Egor Vlassitch.

Egor encontra uma mulher na floresta, a Pelagueia, e eles têm essa conversa estranha, e eu tive que ler duas vezes para entender que ela não era exatamente uma doida maltrapilha perdida no mato. O jeito desprezível como ele a trata e ela ainda continua feliz por causa do encontro, escondendo o sorriso nas mãos como a minha vizinha, a Diana. Pensei se estaria cozinhando algo bom, o marido ainda no trabalho, e se não seria uma boa ideia bater na sua porta para dizer oi.

Não temos nada, nunca tivemos. Somos só vizinhos e estudamos juntos na mesma classe. Ela nunca me chamou muito a atenção, nem na sua particularidade de andar no meio do mato, às vezes, nua.

Não é por acaso que me chamo Diana, declarou certa vez, rindo. Não é à toa. Daí contou uma história, a de um grande caçador grego chamado Acteão que surpreendeu a deusa tomando banho no rio, e por isso ela o transformou num veado, só porque ele a viu nua.

Rimos juntos por um bom tempo daquela idiotice, um mito, ela explicou, e eu perguntei se ela me achava muito burro, e quando as risadas foram secando ela seguiu com aquela mordida no olhar, me encarando meio desconfiada, meio bicho do mato mesmo. Ela era um pouco bicho. Desde adolescente tinha mania de andar pelada na floresta. Nunca falamos sobre isso. Ela sabia que eu sabia, e não sei se seu marido também, mas eu vi, e não foi uma vez só, porque era fácil avistá-la da minha janela, que dava para a entrada da mata.

A lâmpada estava acesa na casa da Diana. Era quarta-feira. O frio, os galhos secos, a penumbra, tudo antecipava os passos de um cervo. Foi me dando vontade de pegar o rifle, de entrar no mato, apesar do anoitecer.

Estava intrigado com a história que tinha lido e ainda pensando na minha vizinha, se realmente não houvera nada entre nós. Como se eu não tivesse percebido que ela fazia isso para me provocar. Seu marido saía para o trabalho e ela ali, cuidando das tralhas da casa. Eu via seu cabelo preto e solto, balançando a cada movimento. Voltei a compará-la à mulher do livro, ali entre as árvores, maltrapilha e meio abandonada. Pensei nos veados, em como ficam me encarando até eu mandar uma bala precisa, exata, sem errar.

Contar a história para a Diana seria uma boa desculpa para bater à sua porta.

O nome dela é Pelagueia, eu diria, pronto para gargalhar com ela, mas senti um pudor desconhecido. Ela ria pondo as mãos na frente do rosto, como a camponesa do livro, e essa imagem foi afundando na minha cabeça. Nem o segredo aberto de que ela andava às vezes daquele jeito na floresta não me constrangia. Era uma deusa, como ela mesma tinha dito. E as deusas são exibicionistas, especialmente em Chautauqua, perto do lago onde moramos, onde não elas têm ocupação. Engraçado é o significado de Chautauqua na língua dos iroqueses, lugar nebuloso. Outros dizem que a palavra quer dizer lugar dos perdidos, ou até lugar da morte fácil.

Desde criança tinha o costume de ir com meu pai e meu avô. É proibido caçar depois do anoitecer, mas a gente ia mesmo assim. Veado, pato ou puto, como dizia meu pai. O fato é que eu gosto muito de atirar. Isso deve ser da natureza humana. Porque eu gosto mesmo de atirar.

Peguei o rifle. Os veados na floresta iam passando como borrões. Não dava para ver direito, tinha muita neblina no entardecer azulado.

Achei que fosse um animal e atirei. A bala entrou tímida no quadril, ela nem gritou. Quer dizer. Gritou baixinho e eu corri e lhe perguntei por que estava lá. Foi sem querer, ela respondeu. Foi tudo o que ela disse, e eu fiquei pensando se faltou fôlego para uma interrogação, se ela me fazia uma pergunta.

Segurei a sua mão enquanto dirigia para o hospital no meu jipe, aquele que fica estacionado na estação de trem durante o dia, porque tenho outro que vive na garagem. Pensei na nossa adolescência e no casamento dela, quando a festa acabou em briga por causa dos primos bêbados do noivo que moravam do outro lado do rio, perto da reserva indígena. Nunca tive vontade de ficar com a Diana, mas eu gostava dela sim, mais do que sua prima que eu namorei. Ela fechou os olhos e esperou chegar no pronto-socorro.

No hospital repeti não sei quantas vezes que atirei sem querer. Eles me explicaram que ela sangrou demais, como se eu não soubesse disso. Daí vieram as autoridades. Disseram que eu pegaria uma pena pesada e dias depois a vizinhança fez um abaixo assinado a meu favor. Até o marido e os primos doidos assinaram, dizendo que nunca tive intenção de atirar nela e que me conheciam bem. Conheciam nada.

Voltei a pensar no conto do trem e nas brincadeiras de Diana. Lembrei que ela tinha uma coleção de bonecas russas que comprara em uma feirinha da cidade.

Um suvenir, ela falou.

Senti reverência na sua voz. Foi por isso que eu não fui pegando logo no brinquedo, deixei que ela me mostrasse como uma cabia dentro da outra. Esquisita a ideia de uma caber dentro da outra, elas abrem e abrem, tornando-se inalcançáveis, infinitas e minúsculas. E não se parecem às bonecas normais. Sei lá. Não têm cabelo, nem pernas que dobram, só uma forma de bola, mais aquela pintura exagerada e o verniz em cima da madeira. Mas trazem memórias. Por exemplo, acabo de pensar nelas. E o que me veio à cabeça foi um canto de casa da Diana, algum lugar sem importância entre a sala e a cozinha, algum calor, latido.

Hoje faz um ano que Diana morreu. Amanhã é Dia de Ação de Graças e a vida segue estranhamente igual. Depois de voltar do trabalho, saí para caçar, mais para fazer alguma coisa do que realmente precisar da carne. Fiz o mesmo percurso no trem, as árvores se afastando de mim, depois o jipe até em casa. Seguia pensando em Diana, lembrando daquela história que li. Dei uma volta pelo bosque com o rifle, mas voltei sem caça. Coloquei lenha no fogo, esquentei a comida e adormeci no sofá com a televisão ligada.

Às vezes sonho com ela, que estamos andando juntos, no mato. Ela vestida de deusa, do jeito dela. Durante o dia tento juntar os pedaços de sonho na tentativa de que as coisas ganhem sentido, mas vai explicar o quê. Talvez fosse o dia dela.

Lucrecia Zappi é escritora, jornalista, tradutora e curadora, autora dos livros Mil-folhas (2009), Onça Preta (2013) e Acre (2017). Nascida em Buenos Aires, cresceu em São Paulo e mora em Nova York. (Foto: Vicente de Paulo)