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Um brinde a Antonio Maria (como nos velhos tempos…)

17 de outubro de 2014

Há 50 anos, na madrugada de 15 de outubro, nos deixava o bom Antonio Maria. Causa mortis: cardispliscência, como ele mesmo vaticinara algumas vezes. O local: uma calçada de Copacabana, bairro que o acolheu em inúmeras noitadas. Contava então apenas 43 anos de idade. Parece pouco em se tratando de alguém que produziu tanto numa só vida: foi locutor esportivo (função que o trouxe do seu Recife natal ao Rio pela primeira vez, aos 19 anos), jornalista, cronista, redator, poeta, gourmet, boêmio e compositor. Entregou-se de corpo e alma (que os tinha ambos volumosos) a cada uma dessas atividades.

Carioca por adoção, nunca deixou de lado suas raízes pernambucanas. Invocou o ritmo maior de sua terra compondo sozinho uma série de cinco frevos (sendo mais famosos os três primeiros, conhecidos apenas por “Frevos nº 1, nº 2 e nº 3 do Recife”). O primeiro, escrito por ele quando ainda morava em sua cidade natal, foi lançado em disco em 1951 pelo Trio de Ouro (em sua segunda formação: Herivelto Martins, Nilo Chagas e Noemi Cavalcanti) sob o título “Recife”.

 

Antonio Maria, Ary Barroso, Vinicius de Moraes (em pé), Isaac Zuchman e Paulo Mendes Campos (sentados), no Rio de Janeiro. Fotógrafo não identificado/Manchete. Acervo Paulo Mendes Campos/IMS.

 

No Rio, duas almas gêmeas: Maria e Vinicius, poetas e compositores, notívagos, bons copos, mulherengos, parceiros nas noites e nos bares. Curiosamente, pouco produziram juntos em termos de música: apenas quatro, três delas verdadeiras joias. O “Dobrado de amor a São Paulo” foi gravado em 1954 por outra parceirinha de boemia, Aracy de Almeida, que cantava: “São Paulo, quatrocentos anos / E eu, coitada, quatrocentos desenganos de amor”. Puro Antonio Maria. Ou seria puro Vinicius? Deles, Aracy também gravou, em 1953, “Quando tu passas por mim” (só de Vinicius, embora assinada por ambos). Ainda da mesma dupla, Nora Ney lançou, no ano seguinte, “Quando a noite me entende”, outro exemplo do samba-canção “abolerado” (com muitas aspas) que marcaria a carreira do Menino Grande (título, aliás, de outro de seus sambas mais conhecidos, música e letra de sua autoria: “Dorme, menino grande, que eu estou perto de ti / Sonha o que bem quiseres e eu não sairei daqui”).

Com o conterrâneo e parceiro constante (de canções, de fome, de brigas, de pileques, dos cabarés da Lapa) Fernando Lobo (pai de Edu e avô de Bena), fez surgir clássicos de nossa música. Um deles, assinado pela dupla, mas de autoria apenas de Maria, tornou-se obra-prima do samba dor-de-cotovelo, cheio da melancolia e da solidão que permearam sua vida: “Ninguém me ama”. Nora Ney o gravou em 1952, junto com “Menino grande”, lançando o compositor ao sucesso. A letra dizia: “Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso / E hoje, descrente de tudo, me resta o cansaço / Cansaço da vida, cansaço de mim / Velhice chegando, e eu chegando ao fim”.

Solitário sim, sozinho nunca: Maria estava sempre cercado por amigos ou paixões, que cativava com pitadas de doçura e sedução. E bom humor também: certa vez, na boate Sacha’s, autoparodiou-se ao microfone, modificando a letra de sua criação mais famosa: “Ninguém me ama / ninguém me quer / ninguém me chama / de Baudelaire…”.

Em matéria de humor, era impagável. No programa “Preto no branco”, da TV Rio – do qual participava ao lado de Haroldo Barbosa, Flávio Cavalcanti, Sérgio Porto e outros craques criando perguntas a ser respondidas pelos entrevistados – ficou famosa a pergunta que fez ao fundador da Legião da Boa Vontade, através da voz do apresentador Oswaldo Sargentelli: “Senhor Alziro Zarur: se Jesus está chamando, por que o senhor não vai logo?”. Além da TV, brilhou no rádio, onde foi redator de programas humorísticos na Tupi e na Mayrink Veiga, criando textos para grandes atores cômicos, como Orlando Drummond, Nádia Maria, Zé Trindade e Chico Anysio.

Dois de seus parceiros mais constantes foram o pistonista e pianista Pernambuco (Ayres da Costa Pessoa) e Ismael Netto, fundador do conjunto vocal Os Cariocas. Com o primeiro, compôs clássicos como “Suas mãos” (gravado por Sylvia Telles e Maysa em 1958), “O amor e a rosa” (por Elizeth Cardoso em 1960) e “A canção dos seus olhos”, que somente em 1960 recebeu registros em disco de Elizeth, Maysa e Hebe Camargo. Da parceria com Ismael nasceram, entre outras, a triste “Canção da volta” (lançada em 1954 por Dolores Duran), “Madrugada 3:05” (de Maria, Ismael e Reinaldo Dias Leme, gravada em 1955 por Nora Ney) e a iluminada “Valsa de uma cidade”, que Lúcio Alves eternizou em 1954: “Rio de Janeiro, gosto de você / Gosto de quem gosta deste céu, deste mar, desta gente feliz”. Uma música ensolarada, com uma pitadinha de amargura no final, bem ao gosto de Maria: “E no poema que eu fiz tinha alguém mais feliz que eu / O meu amor / Que não me quis”.

Seu nome acabou ligado à bossa nova – contra a qual, aliás, fazia duras críticas – graças a essas parcerias com Ismael Netto (anteriores à própria bossa nova, diga-se de passagem, já que Ismael faleceu em 1956) e também a duas canções feitas com o violonista Luiz Bonfá, lançadas em 1959 na trilha do filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus: “Samba de Orfeu” (“Quero viver, quero sambar / Até sentir a essência da vida me faltar”) e, principalmente, “Manhã de carnaval” (“Manhã, tão bonita manhã / De um dia feliz que chegou”), uma das músicas brasileiras de maior sucesso no exterior, tendo recebido incontáveis regravações aqui e lá fora.

Maria, bamba do samba-canção e da fossa, passeou também por diversos ritmos e colecionou parceiros que à primeira vista parecem distantes de seu estilo, como o sambista Zé da Zilda, o sanfoneiro Zé Gonzaga (irmão de Luiz, Rei do Baião), o Rei das Emboladas Manezinho Araújo, o saxofonista Moacyr Silva, João Roberto Kelly, Paulo Soledade e Evaldo Gouveia.

Além da incansável atividade de compositor, na qual criou com maestria os mais aclamados versos de (des)amor da boemia carioca, Antonio Maria era mesmo um artista multifacetado. Segundo José Aparecido de Oliveira, ex-ministro da Cultura:

Era um caleidoscópio de talentos. Um dos mais fecundos de nossos criadores. (…) Desenhista. Conhecia moda como um estilista. Falava de cozinha, aviava receitas, cozia. Poeta admirável. Compositor dos mais notáveis da música popular brasileira. E com pleno domínio e intimidade com a sonora língua portuguesa. (…) Marcou um novo estilo na crônica esportiva, que do Ceará levou para Recife e para Bahia. (…) Criou expressões inesquecíveis, como as ‘mal amadas’. Incorporou nas suas crônicas a linguagem do povo, enriquecendo os dicionários do nosso idioma. E cantou suas duas cidades em músicas que se tornaram clássicas – um frevo para o Recife, uma valsa para o Rio. Ele mesmo fazendo a letra, discutindo a música, às vezes escrevendo notas na pauta. Um artista completo.

Dentre todas essas habilidades, destacou-se sobretudo como cronista de diversos jornais e revistas, atividade no qual se tornou “inigualável”, como definiu Paulo Francis.

Seu biógrafo, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, reuniu em Benditas sejam as moças: as crônicas de Antonio Maria 47 crônicas publicadas no jornal Última Hora, entre 1959 e 1961, das quais 45 eram inéditas em livro. Os textos tratam exclusivamente do grande amor que Maria sentia pelas mulheres, e que era compartilhado pelo amigo e incansável companheiro de noite Vinicius de Moraes. Na deliciosa apresentação que o poeta de Orfeu da Conceição fez para o primeiro livro de crônicas do “seu Maria” (O Jornal de Antonio Maria foi publicado postumamente em 1968) afirmava: “Mas por um motivo eu sei que você gostaria de estar vivo: as moças. Elas estão, meu Maria, cada dia mais lindas e esportivas, havendo mesmo uns espécimes de se espetar na parede com alfinete”.

O “Jornal” era uma das duas colunas diárias que Maria assinava na Última Hora. Com pauta livre, escrevia sobre temas que lhe eram caros: música, perfis, noite, política, Recife, Rio, mulheres, amor… O amor, pulsão vital, era ponta de uma corda bamba em que o Menino Grande se equilibrava com humor, insegurança e certa nostalgia de si até chegar ao final. Na outra coluna, “Romance Policial de Copacabana”, publicava notícias apuradas por ele na delegacia do bairro carioca.

Joaquim Ferreira dos Santos publicou ainda O diário de Antonio Maria, com textos escritos por este entre 12 de março e 19 de abril de 1957, nos quais registrou os acontecimentos de sua vida naquele período. Segundo Joaquim, este diário, para além do que pode nos oferecer de novo sobre a personalidade de Maria, seus íntimos anseios, tormentos e alegrias, “funciona também como um making-of (…). As anotações de Maria revelam como nasciam suas crônicas noturnas, os bastidores de seus dramas passionais”.

Sob o título de “Pernoite”, que virou livro, Maria publicou uma série de crônicas na revista Manchete no início da década de 1950. Para José Aparecido de Oliveira, que fez a apresentação do livro, Maria “passava as noites, tomava pousada – ou seja: literalmente pernoitava – no coração dos outros boêmios que participavam de suas trampolinagens, de sua às vezes abissal solidão e do enorme talento que possuía para flagrar sensações que a muita gente passavam despercebidas. A beleza do voo do urubu, por exemplo. Ou do cheiro de lápis que exalava da mulher que dormira ao seu lado”.

No final do livro, há ainda uma inusitada entrevista póstuma escrita por Vinicius de Moraes, que alega ter sido visitado por um gordo (e misterioso) passarinho. “Não sou homem facilmente impressionável, mas os pêlos do braço se me eriçaram e um calafrio percorreu-me a espinha de alto a baixo. Senti que aquele passarinho era Antonio Maria”. E estava certo: confissão do próprio Maria, que aparece “em pessoa” para o poeta. Nesse momento, Vinicius não perde a chance de “psicografar” a conversa com o amigo que deixara tantas saudades. E, mesmo quando o assunto é a morte, o tom é, como sempre, leve e bem humorado: “Eu não pedi para morrer, mas já que morri, deixa estar”.

Muito há para ser lembrado sobre Antonio Maria de Araújo Morais, que no último dia 17 de março teria completado 93 anos. Em 1970, Paulo Pontes montou no Teatro Casa Grande o espetáculo “Brasileiro: profissão esperança” (expressão que Maria usou certa vez para definir a si próprio), com Italo Rossi (depois Raul Cortez) e Maria Bethânia, sob a direção de Bibi Ferreira. No palco, textos e canções de Antonio Maria e Dolores Duran. Remontado em 1974 no Canecão, com Paulo Gracindo e Clara Nunes, obteve sucesso retumbante de público e crítica. No final da década de 1990, a própria Bibi Ferreira o reencenou, ao lado de Gracindo Jr.

Homenagens que hoje parecem esquecidas num passado não muito distante. “De que serve viver tantos anos sem amor?”, pergunta o poeta em “Se eu morresse amanhã” (samba-canção lançado em 1953 por Dircinha Batista). “Se eu morresse amanhã de manhã / Minha falta ninguém sentiria / Do que eu fui, do que eu fiz / Ninguém se lembraria”. Passados 50 anos de seu desaparecimento, fica a pergunta: teria ele razão?

Imagem no topo da página: Antonio Maria. Fotógrafo não identificado. Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo IMS.

 

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