A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Para este mês, Carlos Eduardo Pereira criou “Um tanto frio e meio pálido”, inspirado numa fotografia de Alécio de Andrade, carioca que viveu grande parte de sua vida em Paris, e fez das cenas cotidianas da capital francesa um de seus temas preferidos. Entre 20 de outubro de 2018 e 24 de março de 2019, o IMS Rio apresenta a mostra Cartas a Alécio de Andrade, que reúne 45 retratos de intelectuais e artistas com os quais o fotógrafo conviveu no Brasil e na França.
o sujeito totalmente alheio às possibilidades da rua
dormindo sentado no banco da praça
não sabe que aqui vez ou outra aparece um gatuno?
não tem medo de que levem seu relógio?
carteira
celular
será que não tem medo?
ou de que nem levem nada mas de que resolvam lhe fazer uma maldade só por diversão?
fiquei pensando: na sua maleta pode haver alguma coisa de valor
escondido no meio destes panos encardidos
destes potes sujos
pode ser que tenha algo de valor
num dos bolsos da japona azul
o china dormindo pesado
de repente num momento de meditação
imaginando como vai pintar o que tiver que pintar
antes de qualquer coisa
como um atleta
um nadador que pensa a prova do início até o fim
antes de qualquer coisa
do instante de cair na água até chegar na outra margem do canal
pensando os movimentos que fará
o ritmo das pernas batendo
da respiração alternada uma hora pra esquerda e outra hora pra direita
pensando o tempo que fará de borda a borda e que vai ter que ser menor que do que o último tempo que ele fez
pensando os trancos
as cotoveladas que vai ter que aplicar num concorrente que se meta em sua reta
de repente desistiu de pintar qualquer coisa com preguiça do tempo que demora pra pintar qualquer coisa na tela
de repente ficou tomando conta destes cacarecos de um pintor que foi ali rapidinho e que já volta
nesse caso um tomador de conta que não tem muito talento
nesse caso corre o sério risco de que pinte um miserável assumindo o lugar desse pintor
e que esse miserável pinte nesta tela uma desgraça qualquer que vier na cabeça
de repente um japonês que se perdeu de seu grupo de amigos turistas
talvez um bocado cansado dessa correria de tirar todas as fotos possíveis de tudo que aparece pela frente
então acaba que chega um gaiato e que monta justamente à sua frente um cavalete
gaiato que por sua vez foi ali rapidinho e já volta
fiquei pensando: se o cara que dorme na rua é artista que passa chapéu no metrô
funcionava melhor se fosse músico
um tocador de violino
fiquei pensando: de repente é apenas um velho esquecido na praça na esperança de esquentar os seus ossos ao sol
se essa função de pintar fosse minha eu pintava era o sol
não pintava nem ponte nem prédio nem barco
mas o sol
firmava a vista o tempo todo neste sol que está se pondo agora e entrava numa de pintar raio por raio
de amarelo com vermelho eu fazia um laranja
pintava este sol que aquece nada e que ilumina muito pouco
pintava o sol
Carlos Eduardo Pereira nasceu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1973. Cursou História na UFRJ e Letras na PUC-Rio, na habilitação Formação do Escritor. Lançou, em novembro de 2017, seu primeiro romance, Enquanto os dentes, pela editora Todavia.