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Do fundo do baú do Millôr

15 de agosto de 2016

Quando a exposição Millôr: obra gráfica, que fica em cartaz até o próximo domingo, dia 21, no IMS-RJ, estava ainda em processo de elaboração, os curadores sentiram falta de um conjunto importante. Dos originais da série “Esta é, realmente, a verdadeira história do paraíso” – publicada por Millôr na revista O Cruzeiro, em 1963, e posteriormente no Pif-Paf –, somente uma prancha constava no acervo do humorista, jornalista e desenhista, desde 2013 sob a guarda do IMS em regime de comodato. A saída foi expor este filho único ao lado dos facsímiles das páginas impressas, como o público pode ver na mostra que reúne, desde abril, 500 dos seus trabalhos originais. Porém, a ausência dos outros desenhos continuava a intrigar os curadores, já que Millôr era conhecido por sua extrema organização.

No mês passado, Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS e uma das curadoras da exposição – ao lado de Cássio Loredano e Paulo Roberto Pires – recebeu um telefonema de Ivan Fernandes, filho de Millôr, dizendo que havia encontrado outras caixas do pai. Bingo. Entre vários trabalhos, estavam ali os outros desenhos da série polêmica, no qual Millôr faz uma saborosa paródia do mito da criação do mundo, o que acabou causando sua saída de O Cruzeiro. Pressionada por setores mais conservadores da sociedade, a revista, a mais importante do Brasil na época e na qual Millôr trabalhava há 25 anos, publicou um editorial no qual alegou ter sido “traída” pelo desenhista, que teria publicado a série sem aviso prévio aos editores.

“Em 1963 a sociedade já mostrava um comportamento bem repressivo. O que ele fez era um divisor de águas”, lembra Julia.  Em 1964, pouco depois de os militares tomarem o poder, Millôr funda O Pif-Paf, misto de jornal e revista que levava o mesmo nome da seção que ele assinava em O Cruzeiro, onde os desenhos de “Esta é, realmente…” foram publicados. Em plena ditadura, sofrendo com pressões da censura, o jornal durou apenas quatro meses e oito números – tempo suficiente para que as pranchas polêmicas fossem republicadas e ele entrasse para a História.

A ideia agora é incorporar o material à exposição quando ela for remontada em outros lugares. Em 2018, por exemplo, ela estará no IMS-SP, revelando mais uma vez ao público a multiplicidade do genial desenhista, que mapeou com fina ironia, bom humor e precisão todos os recantos da sociedade, dos cidadãos comuns aos poderosos.

“Millôr teve 70 anos de carreira, e todos eles foram muito produtivos. Passou por várias gerações, vários públicos, e todo mundo se acostumou com Millôr como parte de sua vida, todo mundo se sente um pouco dono do Millôr”, diz Julia. “Quando você vê a obra inteira, como nessa exposição, tem um impacto enorme, tem a dimensão da obra inteira. Deixa de ser apenas uma sensação e passa a ser uma constatação do gigantismo dele. Ele marcou a cultura brasileira do século XX, desenhando e refletindo sobre tudo”.

Além de “Esta é, realmente, a verdadeira história do paraíso”, as novas caixas que chegaram ao IMS continham outros trabalhos importantes: vários desenhos que integraram a exposição que Millôr fez em 1957 no Museu de Arte Moderna do Rio, quando a instituição ainda funcionava no Palácio Gustavo Capanema (alguns já fazem parte do acervo e da mostra no IMS, mas não se sabia do paradeiro dos outros). Foi a primeira exposição do desenhista e aquela que teve maior repercussão, com diversas críticas positivas e admiradas.

“O humor estava presente, mas ali ele deu um salto na arte. Na época ele era um popstar, assinava como Vão Gogo na Cruzeiro, fazia um baita sucesso. Era amigo de muita gente no mundo da arte como Mário Pedrosa, Pietro Maria Bardi”, conta Julia. “Depois ele volta atrás, porque não se sente confortável no papel de artista. Ele se entendia como jornalista, o trabalho dele não era para galeria. No acervo há cartas do Bardi pedindo para ele expor no Masp. E ele não foi…”

 

Alguns dos trabalhos encontrados

 

 

 

Layouts para Esta é, realmente, a verdadeira história do paraíso, 1963
Acervo Millôr Fernandes/Instituto Moreira Salles

 

Mens sana, 1957
Nanquim sobre papel, 50,2 x 76,5 cm
Acervo Millôr Fernandes/Instituto Moreira Salles
(Obra da primeira exposição de Millôr, em 1957)

 

Deformação profissional, 1957
Nanquim sobre papel, 36,4 x 51,1 cm
Acervo Millôr Fernandes/Instituto Moreira Salles
(Obra da primeira exposição de Millôr, em 1957)

 

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