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Caderno de editora: Ana Cristina Cesar

18 de julho de 2016

A simples menção ao nome de Ana Cristina Cesar basta para evocar os muitos mitos que pairam sobre a poeta. Um deles é a lembrança de Ana como criança prodígio, que ditava poesias para a mãe enquanto caminhava “às vezes, aceleradamente sobre o sofá. As pausas marcavam ritmos, indicando possível mudança de linha”, recorda seu pai, Waldo Cesar. Aos sete anos, Ana teve seus poemas publicados pela escritora e dramaturga Lúcia Benedetti no jornal Tribuna da Imprensa. Aos nove, fazia circular modestos, numerosos e geniais periódicos entre a família, a igreja e o colégio.

Além da prática constante da escrita, porém – quase não há folhas limpas e brancas nos seus muitos cadernos de poesia –, Ana encarou e encarnou igualmente, em sua infância, o papel de editora, num interesse que culminou na criação da fictícia editora Problemas Universais, marcada também como Prouni em seus manuscritos. O mar dos desejos, primeira das nove publicações da Problemas Universais que constam de seu acervo, data de 23 de dezembro de 1961. Ana tinha apenas dez anos.

Se para os adultos parece muito natural que as crianças assumam um personagem do mundo do faz-de-conta, para Ana o trabalho de edição aparentemente estava bem distante da mera brincadeira infantil. Prova disso é a quantidade de publicações que preparou e a constância com que se dedicou aos livros feitos à mão, além daqueles com o selo da Prouni. E, ao contrário do que se pode imaginar, apenas um, Os oito pronomes pessoais, é de poesia. Os demais, em prosa, vão de contos ilustrados, fábulas e novela (Anatomia de um sete de julho, Estórias da Amazônia, Fábulas do mundo, O mar dos desejos e o O mar azul), até um trabalho escolar, México.

Mesmo tão jovem ela já demonstra, nesses nove títulos publicados pela editora imaginária, o domínio dos processos e da linguagem editorial na construção do objeto livro: cada exemplar traz, devidamente identificados e nomeados por Ana como tal, capa, colofão, índice, sumário, prefácio, fac-símile, lista onomástica, edição póstuma...

Bem mais tarde, beirando os 30 anos, com livros publicados e trabalhando também como crítica e tradutora, Ana Cristina registraria, em Correspondência completa (1979): “Passei a tarde toda na gráfica. (...) Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca”.

Não se trata, portanto, somente da produção de conteúdo, mas, sobretudo, do cuidado e invenção de um suporte, de um mecanismo que, segundo o artista plástico Waltercio Caldas, “nos propicia, pelo formato e o tamanho das folhas, um certo grau de intimidade que justifica o conforto na leitura. A união entre as páginas – o vértice da encadernação — nos faz conservar o objeto nas mãos, mantendo-o tensionado… e funcionando”.

Saber o idioma do livro é saber que é possível inventar um lugar impresso – e Ana parecia transitar à vontade nesse espaço desde muito nova. A editora Problemas Universais, que dirigiu dos 10 aos 14 anos, além de ser uma pista dessa atividade até pouco tempo desconhecida, permite adivinhar, como se já não soubéssemos, até onde a levaria seu interesse pela prática literária.

Não era uma criança brincando de publicar: era uma mulher confabulando com seu futuro amante.

 

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Elizama Almeida é assistente cultural da Coordenadoria de Literatura do IMS.

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