Machado de Assis já dizia, no conto antológico “Capítulo dos chapéus”, que “o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab eterno; ninguém o pode trocar sem mutilação”.
Pois foi com sensação de ser amputado que Otto Lara Resende trocou seu velho e deselegante chapéu por um novo, na época em que morou em Bruxelas, ou na Bruxa, como preferia chamar a capital da Bélgica, onde trabalhou como adido cultural de 1957 a 1959. A mudança foi imposta pelos colegas da Embaixada no Brasil, e o trauma decorrente não o impediria de declarar que ali vivera o melhor período de sua vida, ainda que o salário não fosse tão bom como se poderia pensar. Considerava-se, na verdade, “adido e mal pago”.
Talvez por isso mesmo julgasse adequado à sua condição financeira o chapéu que ele mesmo reconhecia como caipira, mas com o qual não deixou de posar, quase solene, ao pé do monumento a Luís XIV, com o Palácio de Versalhes ao fundo, numa das pequenas viagens que fez à vizinha França logo que chegou à Bélgica.
Pouco depois disso, os colegas promoveram uma queima desse chapéu na sala do embaixador, que, naquela ocasião, era Hugo Gouthier, e deram ao adido cultural um chapéu novo, elegantíssimo, arredondado, de copa saliente, preto, abas viradas, aquele mesmo modelo com que Freud andou cobrindo sua cabeça de pai da psicanálise e que seria imortalizado por Charles Chaplin. É o elegante chapéu bowler, que surgiu no século XIX e até hoje pode ser visto nas cabeças dos príncipes ingleses quando querem causar um efeito retrô.
Charmosos, sem dúvida, mas, naturalmente, não representam mais o que Conrado Seabra, a personagem machadiana do conto “Capítulo dos chapéus” , disse à mulher, Mariana, quando ela, inconformada, insistia para que ele substituísse o chapéu velho por um melhor. Radical e irônico, o marido, opondo-se qualquer mudança, lhe responde que “pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu”. Mariana, que prezava a paz do lar acima de tudo, não deixou de reconhecer o sarcasmo do marido, mas, em nome da harmonia familiar, calou-se.
Para Otto, até capacete valia, como se vê na foto com o filho Bruno, brincando de guerra. Quanto às verdades da personagem machadiana, certamente eram discutíveis para ele, e depois de ter sido forçado a substituir seu velho chapéu pelo novo, passou a variar bem de estilo – é o que mostram algumas das fotos em seu arquivo sob a guarda do Instituto Moreira Salles.
Na festa do Natal de 1981, em Londres, onde visitava a filha Cristiana, que ali estudava, Otto não se furtou a cobrir a cabeça com uma espécie de chapéu com que os ingleses gostam de se enfeitar nesse dia. Feito de papel dourado ou prateado, é, na verdade, mais uma coroa do que chapéu, e pode ser usado por homens e mulheres. A ala feminina, integrada por sua mulher, Helena Pinheiro de Lara Resende e as duas filhas do casal, Heleninha e Cristiana, além de Bruna Nogueira, mulher de Armando Nogueira e amiga da família, preferiu deixar os cabelos livres, mas Otto entrou totalmente no clima English Christmas. Enchapelou-se. No ano seguinte, no dia de seu aniversário, 1 de maio, nova festa em mais uma visita a Londres, e, dessa vez, chapéu de verdade.
Em mais uma visita à cidade quatro anos depois, ele posa de boné, ou boina, complemento que vai bem com a roupa social – garantem os entendidos no assunto. Até aí tudo de acordo com o uso tradicional desse complemento do homem, ou o contrário, como quis Machado?
Seja lá como for, uma outra foto revela que ele também soube abrir mão do uso convencional do acessório e improvisar um para se proteger do sol num passeio de lancha no Havaí, quando usou um chapéu rendado, feminino, ao lado de uma jornalista paulistana, amiga dele e de sua mulher, que integrava a comitiva em visita à ilha.
Dos “Quatro Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse” – expressão criada por ele para definir o lendário grupo que compôs com Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Fernando Sabino –, Otto não foi o único a valorizar o chapéu. Sob o título “O chapeuísmo”, de 1965, e com sua erudição especialíssima, porque nunca pesada e sempre agradável, Paulo Mendes Campos escreveu uma crônica inteira sobre a importância desse complemento do vestuário. “Tirando o chapéu, o homem está nu”, afirma a certa altura. E esta não foi a única crônica sobre o assunto, a que volta em “A mulher e o chapéu”, cujo final é assim:
Tirem a roupa toda, se quiserem, mas não tirem o chapéu. Só o chapéu distribui sensualmente a sombra e a luz do rosto. Só o chapéu revela e insinua as nuanças dos olhos, da boca, dos cabelos.
E da alma.
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