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Contraste

Memórias de uma amizade

Entre os objetos significativos que me acompanham em minha cotidiana labuta do escritório, guardo uma bem emoldurada reprodução de um arranha-céu de Frank Lloyd Wright e a já famosa fotografia de Telhas do Thomaz. Para mim são símbolos evocativos de uma amizade iniciada no final da década de 1940 quando nossos pais, imigrantes húngaros (os Farkas bem antes dos Wilheim) se encontravam socialmente e desejavam, como era natural, que seus filhos também o fizessem. Os Farkas já haviam deixado a casa da Travessa Buri para morar no Pacaembu, no terreno em que, no futuro, habitaria sua neta.

A reprodução tem no verso uma dedicatória de seu Desiderio, fundador da Fotoptica, em que augura êxito ao jovem arquiteto recém-formado. A fotografia que me atraía por seu grafismo, sua rigorosa composição “encontrada” no amontoado de telhas, hoje constituindo uma de suas melhores obras, ainda hoje me encanta.

Naqueles tempos, contudo, a pequena diferença de idades (a favor do Thomaz) resultava enorme; pois enquanto ele já era um engenheiro politécnico, eu, como universitário mackenzista, ainda travava lutas acadêmicas e estudantis. Nossa amizade só se cimentaria mais tarde, quando, após ter assistido a seu casamento com Melanie, e já casado com Joanna, os casais e seus filhos (quatro deles, dois nossos) vivenciaram o intercâmbio e a cumplicidade que caracteriza a vida de jovens casais construindo seu futuro.

Por isso não presenciei a fase experimental em que Thomaz com Geraldo de Barros, Marcelo Grassmann e Haroldo de Campos elaboravam suas fotos surrealistas, pioneiras e cheias de viço e humor. O surrealismo em fotografia viria a me atrair, pois correspondia a minha admiração por Buñuel em cinema e a Kafka e ao Mario de Andrade do rapsódico Macunaíma em literatura. Era o período em que escrevia, a cada viagem a Jaú, onde acompanhava a construção de hospital que projetara, um breve conto, um haicai em prosa, de cunho surrealista. Thomaz, sempre pioneiro, trouxera, para a admiração e espanto dos amigos, um curta-metragem surrealista de Maya Daren, de bela fotografia e muito mistério.

Também admiro algumas de suas fotos dos anos 60, de rigorosa geometria, tensão gráfica acentuada pelo enquadramento, que ecoava, para mim, o rigor das plantas de Mies van der Rohe, arquiteto que me inspirava à época.

Nossa amizade também se transformou em delicada relação de trabalho, ao ser contratado para projetar a sua residência da rua Itaperuna, de construção demorada e que, creio, ainda hoje atende à dinâmica das demandas de uma família que, ao longo do tempo, crescia e depois diminuía à medida que, fatalmente, os filhos já adultos e casados iam morar alhures. A relação pessoal entre cliente e arquiteto, mormente quando se trata de projetar o espaço da vida cotidiana, nem sempre é fácil. No entanto, apenas guardo desse período boas e construtivas lembranças, em boa parte graças ao trato sempre gentil e delicado que Thomaz dava às argumentações.

Os anos 50 e 60 foram, para nossa geração, de intensa politização e por diversas vezes reuníamo-nos na simpática casa Farkas da rua Avanhandava, projeto de pré-fabricação pioneira de Oswaldo Bratke, para debates, por vezes bizantinos, sobre socialismo, política, desenvolvimento, guerra fria e os destinos do Brasil. Mas a relação e vivência de Thomaz com esses temas era bem mais realista; escapando do debate acadêmico, da idealização extremada e da cega militância partidária, seguia ele a intuição da “vida como ela é” e passou do retrato fotográfico da realidade, estampada no rosto de pessoas reais, para a produção de filmes que retratassem a vida do brasileiro. A série de documentários itinerantes pelo Brasil afora que viria a produzir evidencia essa postura, além de refletir a generosidade profissional com que se houve, dando oportunidade a uma série de jovens cineastas.

Foi na perua Dodge conduzida por ele que, com os amigos Mauricio Segall e Pedro Paulo Poppovic, levamos ao Rio a proposta para a nova capital, projeto com que participava do concurso para o plano piloto de Brasília. E foi Thomaz quem fotografou o caramujo que ilustrava cada prancha, simbolizando a relação entre centro e periferia, o local e o geral, que propunha para o sistema viário e zoneamento da nova capital.

Brasília foi o tema preferido por Thomaz no começo dos anos 60. São hoje consideradas históricas as suas fotos que documentaram as expressivas feições dos construtores da nova capital, assim como sua forma de viver e sua produção – moradias pobres e palácios governamentais -, além do registro de momentos fundamentais, como os que retratavam o presidente Juscelino Kubitschek no meio do povaréu. Amálgama de fotógrafo com seu tema, do olho observador e do objeto vivo que se expunha à câmera, na singeleza, expressividade e significância do ser humano.

A atividade empresarial na condução da Fotoptica, em fase de crescimento, levou-o a novamente contratar o amigo, e lá fui eu a projetar as lojas de filiais da Conselheiro Crispiniano e do largo da Misericórdia, assim como um prédio modesto, porém inovador, à rua São Bento (hoje bastante desfigurado). Quando Thomaz já tinha Henrique Macedo por colaborador, também projetei, com o engenheiro Alessandro Barghini, o sistema de recuperação e reutilização do calor, associando ar condicionado e aquecimento de água nos modernos laboratórios da Fotoptica. Estes acabaram sendo vendidos, antes de o serem as próprias lojas, em uma competente negociação.

Os caminhos de amigos cruzam-se e se descruzam, porém nunca se rompem, pois significativa é a memória para cada um de nós. O entrelaçamento das amizades de nossos filhos é, em boa parte, resultado da importância que demos, na sua formação, à seriedade, ao comprometimento, ao cumprimento de responsabilidades, mas igualmente à importância do amor, da amizade, da compaixão pelo ser humano que tanto caracteriza o Thomaz.

Se devesse sintetizar, além da admiração pelo talento do fotógrafo, o que caracterizava meu amigo Thomaz, diria que afeto e generosidade o expressariam de forma adequada.

 

Experiência surrealista com os colegas da Escola Politécnica (Poli), 1947. São Paulo, SP.