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Texto extraído da edição de 2009 do livro O Louvre e seus visitantes, com fotos de Alécio de Andrade sobre o tema, publicado pela editora Le Passage com apoio do IMS.

 

Os imaginários do Museu do Louvre

Edgar Morin

Com a criação do Museu Nacional, em 1793, a Convenção transformou as coleções reais, as obras expropriadas nas igrejas e nas casas dos emigrados em propriedade de todos, acessível gratuitamente a todos no Palácio do Louvre, como nos revelam desde os primeiros anos as narrativas de viajantes espantados provenientes de toda a Europa, manifestando suas críticas ou sua admiração. No espírito das Luzes, a nova instituição visava o progresso das artes e a formação dos artistas, graças ao acúmulo de exemplos de excelência das grandes obras do passado, totalmente desvinculadas de seu significado e do seu uso religioso, bem como do seu valor político, simbólico e imperial. Desde sua origem, o Museu do Louvre se dirige ao público sem distinção de classe ou cultura, e a variedade das obras e objetos que guarda e expõe é decididamente profana, privada de qualquer contexto por uma “des-realização” própria do museu e uma “re-simbolização” dos antigos valores de uso, religiosos ou políticos, num valor essencialmente estético, magnificado pela própria inclusão no museu.

Dois séculos mais tarde, quando foram empreendidas a modernização da administração e a regionalização dos museus, a Direction des Musées de France comparou as taxas de frequência aos museus ao número de entradas das salas de cinema, com a finalidade claramente expressa de elevar as primeiras ao nível das segundas. Os organismos culturais deviam seduzir “todos os públicos” com a missão de “conquistar novos frequentadores”, praticando novas políticas mais convincentes e de maior repercussão; mais agressivas, em suma. Instalou-se então o debate, em meio aos responsáveis pela cultura e ao pessoal dos museus, que certos críticos especializados fizeram ecoar na imprensa, entre uma abordagem mais qualitativa das iniciativas voltadas para o público do Museu do Louvre e a adoção de práticas consideradas próprias do consumo de massa.

Hoje, a visita ao “maior museu do mundo” é uma etapa incontornável de todos os promotores do turismo de massa em todos os pontos do planeta, o aumento da quantidade anual de visitantes se traduz em milhões desde a reforma que produziu o Grand Louvre, os órgãos de segurança intervêm nas decisões que eram da alçada da museologia, quando se trata de “fluxo”, e o projeto do “Louvre de Abu Dhabi” suscita polêmicas tão apaixonadas quanto internacionais sobre a legitimidade ou o escândalo de considerar-se a “marca Louvre” como uma grife comercial à venda.

Devido ao seu tamanho, à vastidão das suas coleções, à sua ambição enciclopédica, à sua aura e à reputação de algumas das suas obras-primas, o Louvre serve de referência e modelo a culturas asiáticos, ou do Oriente Próximo, muito afastadas das tradições europeias. O Louvre tornou-se um dos lugares da cultura de massa mundializada, e é provável que tenha sido o primeiro de toda a história. A cultura de massa, tal como se desenvolveu no Ocidente, é talvez a primeira cultura da história mundial a ser tão plenamente estética quanto estritamente profana[1]: a deambulação ritual dos peregrinas do museu é uma errància mais ou menos atenta em busca de um usufruto individual, esvaziado de qualquer referência religiosa, comunitária ou identitária além da imposição vaga de um certo dever cultural e social de acordo com os mesmos esquemas de manipulação de outros tipos de consumo na sociedade contemporânea. Antes que o visitante seja pessoal e singularmente tomado por esta ou aquela obra, por este ou aquele setor da coleção, é o museu inteiro que convoca um imaginário que lhe é próprio, labirinto esmagador repleto de história, carregado de uma memória que remonta às mais distantes civilizações, da lembrança de rapinagens e conquistas – aspecto das origens das coleções museográficas que a mundialização e a ascensão dos nacionalismos remetem com frequência cada vez maior à frente do palco midiático –; luxo, imensidão, estranheza, peso do poder e da riqueza também são componentes da desestabilização do visitante do Louvre.

O Louvre gerou sua própria mitologia desse fenômeno, amplamente multiplicada e difundida através dos romances, do cinema, da televisão, dos meios de comunicação de massa com sua corte de produtos derivados que são os temas da exceção, do raro, do único, das obras estelares, do original nascido de uma mão mítica, dos preços astronômicos e ainda do segredo (o das reservas, dos laboratórios e das oficinas de restauração, dos bastidores). E é provavelmente nessa mitologia que o visitante investe o seu imaginário ou, melhor, entrecruza imaginários coletivos e individuais.

O Louvre é um espetáculo que remete a outros espetáculos dos quais seu brilho por sua vez se alimenta. É através dos espetáculos que se espalham os conteúdos imaginários. A partir do modo estético, constrói-se a relação de consumo imaginário. O visitante do Louvre chega em busca de uma emoção devidamente preparada por uma coorte de imagens e narrativas que já traz consigo e que realimenta, modifica, amplifica no decorrer da sua visita, e essa emoção é de ordem estética na sua relação com o local, antes mesmo da sua relação com as obras. A relação estética reinveste os mesmos processos psicológicos que operam na magia ou na religião, em que o imaginário é percebido como tão real, ou até mais real, que o real.[2] De certa maneira, o visitante do Louvre vem confirmar uma certa forma de crença, mas desprovido de qualquer objeto da crença, pois o imaginário permanece imaginário.

Surpreendentemente, essa experiência que aciona um imaginário pessoal e íntimo do visitante apoia-se num imaginário de massa, compartilhado em grupo, somado a muitos outros grupos, e cujo valor é tanto maior quanto maior é o número de pessoas que dele participa. A enormidade e à diversidade da massa visual a absorver ao longo de um imenso percurso complicado, por um tempo de visita sempre breve, acrescenta-se a estranheza do que há a ser visto. Os visitantes asiáticos ou orientais não são mais os únicos para os quais a maioria das obras expostas é incompreensível, ou no mínimo estranha. As civilizações antigas, a mitologia, a antiguidade, as alegorias, a história, o mundo cristão, são mundos estranhos para a grande maioria. O visitante médio consome em tempo recorde um volume recorde de imagens, de objetos, de referências, de saberes, e a provação do turista comum muitas vezes faz pensar na maratona. A relação de projeção-identificação que geralmente inicia o diálogo entre a obra-espelho e o espectador aqui quase nunca está presente, ao contrário do que ocorre com os produtos culturais contemporâneos, como o cinema, as séries de televisão e bom número de romances. No Museu do Louvre, constata-se o tempo todo a amálgama entre uma cultura cultivada, entretanto ainda praticada por um pequeno número, e uma cultura de massa, uma cultura do lazer ou do turismo na qual o choque estético, a aesthesis, fonte de uma emoção singular produzida pelo encontro entre um sujeito ativo e um certo objeto, não passa, para a imensa maioria, de uma impressão difusa, o que vários serviços do museu tentam remediar por intermédio de todo tipo de produtos e acontecimentos capazes de esclarecer o visitante.

As fotografias de Alécio de Andrade testemunham 39 anos da vida do Museu do Louvre, dos poucos copistas que ainda vêm plantar seus cavaletes nos corredores às famílias exaustas ou às religiosas imobilizadas pela representação das três Graças em sua nudez. Elas têm a particularidade de apresentar ao mesmo tempo os visitantes e as obras no seu contexto musealizado, e a troca que se estabelece entre a obra e seus espectadores. Com humor e poesia mas com a precisão de um etnólogo, o fotógrafo fixou a variedade das gerações, das atitudes, dos gestuais, da vestimenta, revelando um espantoso abandono dos corpos, uma liberdade.

O que me encanta nas fotos de Alécio de Andrade é que elas me permitem adquirir uma visão em espelho. O “belo” se cria entre diversos interlocutores em momentos diferentes: beleza da tela, maravilhosas atitudes corporais do visitante que evidenciam suas emoções, maravilhoso instinto de Alécio de ter disparado a foto naquele momento exato. E finalmente nós. Um contempla o outro, mas é ainda Alécio que fixa o todo; e depois, plena alegria, nós que temos ainda a possibilidade de interpretar o visível.

A imagem fotográfica traz sua contribuição para a cultura nascida do museu e no museu, nova ramificação da cultura, essa espécie de sistema neurovegetativo que irriga segundo as suas ramificações a vida real do imaginário, o imaginário da vida real.[3]

O imaginário é o além multiforme e multidimensional das nossas vidas e no qual nossas vidas igualmente se banham. O imaginário começa com a imagem-reflexo, que ele dota de um poder fantasmagórico, a magia do duplo.[4]

Tradução de Sergio Flaksman

 

[1] MORIN, Edgar. L’Esprit du temps. Paris: Éditions Grasset Fasquelle, 1962, edição de bolso, p. 89.

[2] Ibid., pp. 87-88.

[3] Ibid., p. 91.

[4] Ibid., p. 91.