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Marcel Gautherot


Apresentação

Nascido em Paris em 1910 e radicado no Rio de Janeiro desde fins de 1940, Gautherot dedicou seu olhar – no qual a sobriedade documental, marca de sua geração, fundia-se ao apurado senso estético de quem se formara como arquiteto de interiores na École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs – a motivos tão variados quanto folclore, arquitetura, natureza e paisagem humana, em diversas regiões do país. Em todos esses campos, manteve um excepcional padrão de qualidade e uma rara consciência de “obra” – que, nos últimos anos de vida, levou-o a dedicar-se exclusivamente à organização de seu monumental arquivo.

A abrangência do trabalho de Gautherot levou Carlos Drummond de Andrade a declará-lo “um dos mais notáveis documentadores da vida nacional”, enquanto o paciente apuro técnico de suas imagens, compostas com um rigor clássico pouco comum na fotografia documental do século XX, valeu-lhe o título de “o mais artista” dos fotógrafos, dado por Lucio Costa. Admirador declarado de Manuel Álvarez Bravo e Henri Cartier-Bresson, Gautherot desenvolveu, porém, um estilo próprio e marcante, que certa vez batizou de “jornalismo científico”. Para ele, “uma pessoa que não entende de arquitetura não é capaz de fazer uma boa foto”.

Segundo seu próprio relato, foi a leitura de uma tradução francesa do romance Jubiabá, de Jorge Amado, em 1938, que despertou no jovem simpatizante comunista, filho de um operário e de uma costureira, a paixão pelo Brasil. Gautherot desembarcou no país pela primeira vez em 1939, quando viajou pela região Norte e contraiu malária. No entanto, só viria a se fixar no Brasil no ano seguinte, após um breve período de convocação para a guerra na África, escapando – como muitos de seus contemporâneos formados no entreguerras – do ambiente sombrio da França ocupada pelos nazistas. Desfrutava, então, de um prestígio nascente como fotógrafo, publicando em revistas de renome como Photographie e Cahiers d’Art e tendo realizado uma expedição fotográfica ao México sob os auspícios do Museu do Homem – que, ainda como arquiteto de interiores, ajudara a fundar, em 1936. Este ensaio, do qual o IMS tem cerca de 200 negativos, chamou a atenção de Pablo Picasso, que solicitou cópias do trabalho.


Marcel Gautherot documentando carrancas de proa em barcos do rio São Francisco. Bom Jesus da Lapa, Bahia, 1946. Fotografia de Pierre Verger/Acervo IMS

Marcel Gautherot logo fixou raízes no Brasil, limitando suas constantes viagens ao âmbito doméstico. Antes mesmo de se casar, aos 50 anos, com uma funcionária da embaixada francesa, Janine Monike Milk, com quem teve um filho, Olivier, já vira sua obra entrelaçar-se com a de diversos nomes de ponta da cultura brasileira do período. Colaborou com Rodrigo Melo Franco de Andrade no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), com Edison Carneiro na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, com Roberto Burle Marx em inúmeros projetos paisagísticos e com Oscar Niemeyer – a convite deste, que o tinha como fotógrafo predileto – na documentação fotográfica da construção de Brasília. Foi ainda repórter freelancer da revista O Cruzeiro e prestou serviços para clientes como o Itamaraty e os Correios.

Apesar dessa integração à elite cultural de seu país adotivo e de sua contribuição significativa à construção da autoimagem nacional em momento histórico tão rico, Gautherot sofreu com a relativa desvalorização da arte fotográfica no cenário cultural brasileiro de seu tempo. Só em 1995 realizou, na Casa França-Brasil, sua primeira exposição individual, acompanhada do livro Bahia: rio São Francisco, Recôncavo e Salvador. Ao morrer, de câncer, no Rio de Janeiro, em 1996, não tinha concretizado o sonho de transferir seu arquivo para uma instituição que zelasse por ele. Isso mudou três anos depois, com a incorporação ao acervo do Instituto Moreira Salles das 2.200 pranchas-contato minuciosamente editadas e dos 21 mil negativos em preto e branco que compõem seu legado, além de cerca de três mil diapositivos e negativos coloridos.

Tendem ao inesgotável as possibilidades de recortes reveladores nesse universo. Um dos conjuntos mais grandiosos é o das quatro mil imagens que documentam a construção de Brasília, entre 1955 e 1960, com uma amplitude temática em que cabem desde as linhas futuristas de Niemeyer até a favelizada “cidade” dos candangos. Ao lado de trabalhos sobre o complexo da Pampulha e o prédio do Ministério da Educação e Saúde, as fotografias de Brasília garantem a Gautherot o título incontestável de principal documentador e divulgador da arquitetura moderna brasileira, com imagens publicadas em revistas do mundo inteiro nos anos 1950-1960.

Outros exemplos já desentranhados do oceano de virtualidade de sua obra são os livros publicados pelo IMS: O Brasil de Marcel Gautherot, de 2001, painel multifacetado de sua produção; Norte, fruto de suas diversas viagens amazônicas, com prefácio em que Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. vislumbram a influência do impressionista Monet na ousadia de transformar igapós em puro grafismo, “jogo quase abstrato de luz e sombra”; e Paisagem moral (com poema de Francisco Alvim), um ensaio sobre os profetas do Aleijadinho, artista por quem o fotógrafo se declarava apaixonado – os dois últimos lançados em 2009. Por último, em 2010, o IMS publicou o livro Brasília, com ensaios de Kenneth Frampton, Sergio Burgi e Samuel Titan Jr., e fotos de Gautherot, comemorando o cinquentenário da capital brasileira. Merece menção também o livro O olho fotográfico: Marcel Gautherot e seu tempo, de 2007, editado por Heliana Angotti-Salgueiro, com base em ampla pesquisa financiada pela The Getty Foundation e apoiada pelo IMS.

No campo da cultura popular, o olhar de folclorista de Gautherot esquadrinhou diversas regiões do país com curiosidade única, certo de que flagrava uma manifestação “mais natural” – e fadada à extinção – da alma brasileira. O próprio fotógrafo destacou (em entrevista de 1989 à pesquisadora Lygia Segala) duas séries: a do bumba meu boi maranhense e a do reisado alagoano, esta considerada por ele a “série mais completa, excelente mesmo”. No entanto, riquezas semelhantes podem ser encontradas nas centenas de fotografias que fez no rio São Francisco – que incluem um ensaio sobre a arte das carrancas parcialmente publicado em 1947, com grande repercussão, em O Cruzeiro –, sobre as festas populares de Salvador e entre os jangadeiros do Ceará. A amplitude dos temas e o escopo de sua realização fotográfica fazem de Marcel Gautherot um artista de dimensões épicas.

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