Imagens que derrubam mitos
Mànya Millen
Duas visões andam de mãos dadas na exposição Conflitos: fotografia e violência política no Brasil 1889-1964, que ocupará o Instituto Moreira Salles do Rio a partir de 25 de novembro, ajudando a derrubar lugares comuns. A primeira, em evidência já no título, é que o Brasil nunca foi um país totalmente pacífico, sem guerras, sem derramamento de sangue, formado só de gente boa e solidária, mitologia verde-amarela que sobrevive alimentada pela maior parte da sociedade. Mesmo que as prisões, mortes e torturas do regime militar estejam frescas na memória, e que as violências mais visíveis, como a da polícia e a do tráfico, sejam uma realidade dolorosamente renovada a cada dia. A outra visão é que uma imagem não necessariamente fala por mil palavras de forma autônoma. Dependendo de como é feita, de como e quando é usada, de qual vocabulário a acompanha, ela pode sugerir interpretações bem distintas do fato. Como lembra Heloisa Espada, curadora da mostra – que fará uma visita guiada com o público na abertura da exposição, às 18h –, fotografia e história nem sempre andam juntas. E entender o papel da imagem nos confrontos é entender a própria história.
A partir destas premissas, com a colaboração das historiadoras Angela de Castro Gomes e Heloisa Starling, e da socióloga Angela Alonso, além de Vladimir Sacchetta na ampla pesquisa iconográfica, Heloisa organizou uma exposição que ajuda a explicar o Brasil de hoje a partir do ontem. São 338 imagens de conflitos desde os anos imediatamente posteriores à Proclamação da República, em 1889 – ela mesma um evento provocado por um golpe político-militar, antecedido por numerosos confrontos iniciados ainda na época da colônia –, até 1964, quando o país mergulharia por vinte anos numa ditadura militar. “Não é nosso intuito revisar a História, e sim desmistificar um pouco, oferecer um olhar diferente sobre um país que sempre teve crises políticas e muitas desembocaram em luta armada. A partir destas imagens entendemos muita coisa das crises que vivemos na atualidade”, afirma Heloisa, coordenadora de artes visuais do IMS.
Além de apresentar uma leitura distinta da história brasileira, a exposição revela também as mudanças pelas quais passou a própria técnica da fotografia, que influenciou diretamente a atividade e o papel dos fotógrafos. Inexistente na época dos primeiros conflitos mostrados na exposição, como a sangrenta Revolução Federalista (1893-1895), a Revolta da Armada (1894-1895) ou a Guerra de Canudos (1896-1897), em 1964, ano do golpe militar, o fotojornalismo já era um gênero amadurecido no país desde a década de 1940. Das fotos formais, posadas e bem compostas encomendadas pelos vitoriosos nas batalhas do passado, feitas com câmeras estáticas, passa-se às imagens flagradas no momento do confronto, na correria nas ruas, capturadas por olhos infinitamente mais treinados e por equipamentos mais leves e modernos.
No IMS Rio o público verá registros em diversos suportes, como o cartão-postal (até a década de 1930 as imagens de conflitos e guerras civis no Brasil circularam desta forma); as fotografias de estúdio; as feitas em estereoscopia (técnica que oferece uma visão tridimensional da cena); e outras projetadas em forma de cinejornal e em vídeos. “É um percurso muito longo no qual vai se formando a figura do fotojornalista, é bonito de se ver. O reconhecimento profissional foi crescendo aos poucos”, conta Heloisa. Neste caminho muitos fotógrafos ficaram sem créditos, uma realidade evidente na grande quantidade de registros de anônimos na mostra. “O conceito de autoria é algo relativamente recente na história da fotografia. Entender isso também é a nossa história”, afirma a curadora, lembrando que parte da pesquisa para a exposição foi feita no arquivo de seis jornais (Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Última Hora), além do acervo dos Diários Associados, hoje pertencente ao IMS.
Com ou sem autoria, posada ou clicada no calor da hora, nenhuma imagem pode ser considerada neutra, pondera Heloisa. “Claro que cada lado do conflito e cada veículo de divulgação tem uma ideologia, uma visão, e no fundo tudo é política. Não havia isenção nenhuma, como não há até hoje”, diz ela. “Se a fotografia está publicada numa revista com uma legenda identificando uma pessoa como comunista, a pessoa que lê vai achar isso, mesmo que não seja verdade”.
A relação ambígua das imagens com os fatos está analisada de forma mais contundente e profunda nos textos do catálogo de mais de 400 páginas que acompanha a exposição, assinados pela curadora e por diversos autores, entre eles as colaboradoras da mostra (Angela Alonso assina também a organização da obra com Heloisa). “Toda imagem realizada num conflito é interessada e abordá-la é abordar também os fatores que moldam seus significados. O assunto deste livro não são apenas as fotos de conflitos armados ocorridos no Brasil em diferentes épocas, mas os propósitos de seus autores e de quem as encomendou, o tipo de tecnologia fotográfica disponível em cada período, os retratados e suas poses, os enquadramentos, as formas de comercialização e circulação das imagens, a posição política dos periódicos que as publicaram, a censura, os textos, os projetos gráficos e as legendas que as acompanharam. Como ponto de encontro dessas questões está a pergunta sobre o lugar da fotografia em cada um desses conflitos”, esclarece Heloisa num dos trechos da publicação, a ser lançada em dezembro.
Do acervo do IMS estão presentes, entre outras imagens, conjuntos expressivos como as fotografias de Juan Gutierrez sobre a Revolta da Armada e a série histórica de Flávio de Barros sobre Canudos – o confronto no interior da Bahia entre o Exército e os populares liderados pelo beato Antônio Conselheiro, imortalizado por Euclides da Cunha em Os sertões, ganhou uma sala inteira na casa da Gávea. Outras 30 instituições (a maioria delas pública) e colecionadores particulares de todo o país cederam material para a mostra que, apesar do foco em insurreições, guerras civis, revoluções e golpes, evitou ultrapassar a fronteira da violência explícita. Duas imagens, porém, separadas por 70 anos no tempo, servem como símbolos e exemplos do foco de Conflitos e como uma inquietante ligação entre o passado e o presente.
Na primeira sala da exposição, que segue uma ordem cronológica, a fotografia “Revolução Federalista: execução de um revoltoso”, feita no Rio Grande do Sul em 1894 por Affonso de Oliveira Mello, pertencente ao acervo da Fundação Biblioteca Nacional, mostra um soldado que segura um facão grudado ao pescoço do prisioneiro. A degola seria feita momentos depois do registro, diz a anotação no verso da imagem. Pensar imediatamente nos vídeos do Estado Islâmico e de outros grupos terroristas atuais é natural. Porém, uma mirada no espelho pátrio lembra que a prática da degola era comum no Brasil e foi levada a cabo pelo Estado até relativamente pouco tempo: em 1938, Lampião e seu bando, também presentes na mostra em fotografias de Benjamin Abrahão (Acervo Instituto Moreira Salles/© ICCA e Sociedade do Cangaço), foram caçados e decapitados pelo Exército, tendo suas cabeças expostas em cidades do Nordeste. O espetáculo de horror ainda hoje se repete tristemente em rebeliões que pipocam de vez em quando em presídios do país, a mais recente delas ocorrida no início do ano no Amazonas, com diversos presos decapitados pelos próprios colegas de confinamento.
A segunda imagem pertence à última sala, que relembra, entre imagens e vídeos, duas tentativas de golpe militar vindas da Aeronáutica ainda nos anos 1950, no governo Juscelino Kubistchek (os levantes de Jacareacanga e Aragarça); a campanha da legalidade comandada do Rio Grande do Sul por Leonel Brizola para garantir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros; o famoso comício da Central do Brasil feito por Jango poucos dias antes do golpe de 31 de março de 1964; os embates travados nas ruas entre militares e civis nos dias que se seguiram. A última foto é a do líder comunista pernambucano Gregório Bezerra sentado no chão da prisão em Recife nos primeiros dias de abril de 1964. A violência que não está à vista, contudo, está num áudio extraído da entrevista registrada no documentário de Luiz Alberto Sanz sobre o político, que já fora preso outras vezes por sua participação em greves e levantes, entre elas a Insurreição Comunista de 1935 (conhecida como Intentona), também presente na exposição. Bezerra conta como foi torturado, teve os pés queimados com ácido e foi arrastado pelas ruas de Recife enquanto militares incitavam a população a linchá-lo. Tudo isso transmitido pelas emissoras de TV locais.
“Não era caso de mostrar essas atrocidades, às vezes a narrativa é mais forte que a imagem”, observa Heloisa. “Ele quase foi degolado. Achamos que era um final tão impactante quanto o início da exposição, um jeito de mostrar, sem explicitar nada, o caminho da História que todos conhecem. Muitas pessoas dizem que em 1964 não houve nada, em 1968 é que ficou difícil, mas já existe essa tortura praticamente no dia do golpe. Depois só piorou, e ali já está evidente que começou muito mal.”
No meio do caminho entre a Revolução Federalista de 1893 e o golpe militar de 1964 - representado, entre outras imagens, pela bela foto de Evandro Teixeira, único fotógrafo vivo a figurar na mostra, feita na noite do dia 1º de abril no Forte de Copacabana -, muitos outros episódios de confrontos pelo país são rememorados. Estão lá, além do grande conjunto de Canudos, a Guerra do Contestado (1912-1916, ocorrida no Paraná e Santa Catarina); a Revolta da Chibata (no Rio de Janeiro, em 1910), motim de marinheiros contra os castigos de açoite recebidos das mãos dos oficiais brancos; a marcha da Coluna Miguel Costa-Prestes (1925-1927); a Revolução de 1923, no Rio Grande do Sul; a Revolução Paulista de 1924, quando a capital ficou sitiada e foi bombardeada; as revoluções de 1930 e 1932; a Insurreição Comunista de 1935; a luta camponesa na década de 1940; o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, com manifestações populares violentas pelo Brasil todo; e o levante dos colonos no Paraná em 1957, um episódio pouco conhecido.
“Muitos desses assuntos ainda hoje dividem a sociedade, como 1964 e a Revolução de 1930”, observa Heloisa. E muitos dos episódios estão intimamente ligados, um desaguando no outro em sequência. Aliás, a curadora chama atenção para outro elo entre alguns embates ao longo das décadas: a questão agrária. Ela está presente na Guerra do Contestado, quando agricultores se revoltaram contra a doação de terras feita pelo governo a madeireiros, incluindo a Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Os registros foram feitos por Claro Jansson, sueco que chegou ao Paraná no final do século XIX e começou a trabalhar como fotógrafo de estúdio. Inicialmente contratado pela Lumber para fotografar as instalações e atividades da empresa, quando o conflito explode ele é chamado para documentar os soldados, a movimentação das tropas. Fez o registro mais completo da guerra, embora não haja imagens das batalhas.
A posse das terras também gerou o violento Levante dos Colonos no mesmo Paraná, em 1957. E, como um dos pontos centrais defendidos pelo presidente João Goulart, a reforma agrária acabou sendo um dos estopins do golpe de 1964. “O tempo todo a exposição nos faz pensar no presente, trazendo paralelos com o momento atual”, afirma Heloisa. “A questão do messianismo, as lutas no campo, a violência da degola, a sociedade dividida... A história nos ajuda a entender o processo do país, quem somos e porque as coisas ainda estão acontecendo hoje. Infelizmente”.
Paralelamente à exposição acontece o curso Literatura e conflitos, organizado por Eucanaã Ferraz. Nos seis encontros, entre 22 e 30 de novembro, obras consagradas da literatura estrangeira e brasileira que fazem do confronto sua matéria-prima – da Ilíada, de Homero a Os sertões, de O tempo e o vento, de Erico Verissimo, a Guerra e paz, de Tolstói – serão analisadas por especialistas.