Retratos afetivos de Alécio
Mànya Millen
Filho do jornalista, professor e escritor Almir de Andrade, dono de uma vasta biblioteca, o carioca Alécio de Andrade aproximou-se desde cedo do universo das letras, das ideias, do pensamento. Antes de abraçar definitivamente a fotografia, por exemplo, chegou a publicar poemas e com eles foi duas vezes premiado em concursos que tiveram entre os jurados nomes como Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Nada mais natural, portanto, que o meio no qual cresceu e se formou se refletisse de maneira intensa em sua atividade como fotógrafo. Isso pode ser conferido a partir do dia 20 de outubro na Pequena Galeria do IMS Rio, às 17h, na mostra Cartas de Almir de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Bulhões, Ismael Cardim, Roberto Alvim Corrêa, Marco Aurélio Matos, Elza Proença, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Fernando Sabino a Alécio de Andrade, composta por 45 retratos de figuras da intelectualidade brasileira com as quais conviveu tanto no Rio como em Paris, cidade na qual morou a partir de 1964 e até 2003, ano de sua morte.
Além dos encontros nos cenários cariocas e parisienses, boa parte desses personagens também manteve com o fotógrafo uma longa amizade epistolar. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, foi um entusiasta de Alécio desde o início, e demonstrou publicamente a admiração. Na primeira exposição do fotógrafo, Itinerário da infância, realizada em 1964 na Petite Galerie, no Rio, reconheceu de imediato a poesia nas imagens e brindou-o com uma crônica-poema no Jornal do Brasil. Anos mais tarde, outra exposição na mesma galeria lhe inspiraria “O que Alécio vê”, belo poema também publicado no jornal. Esses e outros textos estão reunidos no livro homônimo que será lançado na abertura da exposição, estabelecendo assim uma ponte direta entre palavras e imagens na obra do fotógrafo carioca. O livro, publicado pelo IMS, é organizado por Patrícia Newcomer, companheira de Alécio (com quem teve dois filhos), fundadora do arquivo dele em Paris, e curadora da mostra ao lado de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles. Algumas das cartas originais, assim como livros autografados para o fotógrafo, pertencentes ao acervo de Patrícia, também estarão em exposição.
Em Paris, Alécio viveu do fotojornalismo, do trabalho comissionado para a imprensa – foi correspondente da revista Manchete entre 1966 e 1973, produziu para outras publicações estrangeiras, e tornou-se o primeiro fotógrafo brasileiro associado da poderosa agência Magnum, entre 1970 e 1976. Burgi lembra, porém, que as construções mais relevantes de sua trajetória foram os três projetos que ele perseguiu a vida inteira. Um são as imagens de crianças, que renderam sua primeira exposição. O outro são os flagrantes do cotidiano na capital francesa, com um recorte especial para o Louvre, museu que adorava. “Não fotografe o museu, olhe o museu, aprecie o museu”, ele costumava dizer aos amigos. O terceiro são os retratos, entre eles os dos intelectuais e artistas brasileiros, transformados por Alécio numa espécie de extensão de seu afeto.
A exposição, que segue até março de 2019, revela imagens repletas de espontaneidade, calor, intimidade, humanidade, mesmo quando são aparentemente mais posadas. Há o sorriso aberto de Otto Lara Resende – escritor que integra o acervo do IMS, assim como Drummond. A animação dos artistas plásticos Sérvulo Esmeraldo e Flávio Shiró jogando cartas num bistrô. O desalento irônico de Lygia Clark sentada numa calçada ao lado de uma mala. Um perfil de Vinicius fumando, pensativo. O semblante sério de Oscar Niemeyer.
“Ele não foi um fotógrafo como aqueles especialistas que retrataram todo mundo para revistas, mas de uma forma mais impessoal, sem necessariamente ter algum tipo de ligação com os fotografados”, observa Burgi. “Quando Alécio vai morar em Paris já leva uma bagagem dos relacionamentos dele no Brasil, amizades que depois continuam, vão se desenvolvendo, e que ele cultivava porque era o perfil dele, um jovem intelectual com forte proximidade com as artes”. A secretária eletrônica do fotógrafo é uma testemunha dessas amizades. Além dos recados, ele também costumava gravar as ligações com os amigos, e trechinhos de algumas dessas conversas poderão ser ouvidos pelo público na exposição.
No conjunto há pouco mais de uma dezena de imagens produzidas entre 1963 e 1964 no Brasil, quando o projeto dos retratos já estava em andamento, e a maioria é das décadas de 70 e 80, já em Paris. Grande parte delas também é inédita por aqui, inclusive no acervo do IMS, que guarda dois conjuntos de trabalhos de Alécio, os mais representativos no país. O primeiro, com 265 fotografias, foi adquirido em 2008 e apresentado na mostra Alécio de Andrade, uma panorâmica da obra do carioca realizada entre setembro e novembro daquele ano no IMS Rio. O segundo foi uma série especial de 88 imagens reunidas na exposição O Louvre e seus visitantes, em cartaz entre abril e junho de 2009 no IMS em São Paulo. Ambas foram transformadas em livro pelo IMS.
Alécio seguiu em 1964 para a capital francesa para acompanhar a exposição Itinerário da infância, que circulou por algumas cidades europeias com sucesso, e também porque ganhara uma bolsa para estudar cinema. Decidiu ficar por lá, mas não perdeu sua identidade. “A ideia de ser um brasileiro em Paris é absoluta, ele não abandonou nada daqui”, afirma Burgi. Com laços fortes, Alécio tornou-se uma referência importante para toda uma geração de intelectuais e artistas que transitou pela cidade durante os 20 anos da ditadura militar. Fotografou quem estava apenas a passeio; quem, como ele, escolhera viver fora por decisão própria; e quem, como Celso Furtado ou o cientista Luiz Hildebrando Pereira da Silva, teve que se exilar para escapar da perseguição política. “Ele é de fato uma pessoa que está do lado de lá, fotografando, escrevendo, alguém que permite olhar mais de perto as questões da cultura naquele momento. Há todo um universo, esse círculo mais próximo de relacionamento dele, que está sendo espremido pelo regime militar”, pontua o curador.
Um dos fundamentos do trabalho de Alécio, feito fundamentalmente em preto e branco, era valorizar a fotografia como um vínculo com a realidade, como o registro do aqui e agora. “Ele dizia que a única coisa que sabia fazer era fotografar, e que seu papel era estar presente nos acontecimentos”, conta Burgi, lembrando que uma das grandes reportagens de Alécio para a Manchete foi a cobertura dos protestos de maio de 1968 nas ruas de Paris, evento no qual conheceu Henri Cartier-Bresson, que pouco depois o levaria para integrar a Magnum, da qual era um dos fundadores.
Para o curador, durante o período em que esteve na agência Alécio se alinha e aprofunda o conceito da economia de recursos que faz do próprio ato de fotografar a essência do processo criativo, ou seja, sem uso de lentes especiais, efeitos, sem subdividi-lo em etapas posteriores de ampliação, impressão, interferências. “Não é que isso seja melhor ou pior do que qualquer outra opção, todos os processos são relevantes. Mas são escolhas que mostram que o campo da fotografia é extremamente amplo”.
Nos retratos à mostra no IMS Rio, o que evidencia esse conceito de economia de recursos, destaca Burgi, são as linhas escuras ao redor das imagens, comprovando que Alécio usou todo o quadro, que o que se vê ali é a ampliação do fotograma inteiro. Uma cena exposta da mesma forma como ele a capturou. “É uma questão de proximidade, de visceralidade. Isso significa dizer ‘olha, é no aqui e agora que resolvo esse processo’”.
Essa visceralidade se manteve presente até as últimas séries de imagens feitas pelo fotógrafo, que morreu aos 65 anos, em 6 de agosto de 2003, na avassaladora onda de calor que varreu a Europa. Nas duas primeiras semanas daquele mês a temperatura ultrapassou os 40 graus, provocando mais de 35 mil mortes no continente acostumado a um clima muito mais ameno. Um dos países mais afetados foi justamente a França, onde aproximadamente 15 mil pessoas morreram.
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