Letizia Battaglia: Palermo
No corpo da imagem
Lorenzo Mammì
Em Amore amaro, documentário de Francesco G. Raganato (2012), Letizia Battaglia comenta uma de suas fotos mais famosas: a da prisão, em 1979, de Leoluca Bagarella, talvez o mais sanguinário dos chefes mafiosos da época. Letizia começa narrando as circunstâncias da foto: ficou tão próxima do preso que ele conseguiu lhe desferir um pontapé; caiu para trás, mas não antes de conseguir as imagens. Acrescenta então uma reflexão: não é belo, ela diz, fotografar alguém algemado, sem a possibilidade de reagir. É preciso pelo menos se mostrar, fazer com que o retratado nos veja. Só assim, conclui, uma paridade de condições, ainda que relativa, pode ser restabelecida. Mostrar-se para Bagarella, a quem o pentito Tommaso Buscetta atribuía, direta ou indiretamente, mais de 300 homicídios, não é exatamente uma atitude prudente. Diz muito da postura ética da fotógrafa, mas também de sua maneira peculiar, e ao mesmo tempo exemplar, de entender a imagem fotográfica em termos de militância política e social. A famosa boutade de Robert Capa – “Se suas fotos não são boas o suficiente, é porque você não estava perto o suficiente” – virou quase um lema do fotojornalismo. No caso da Battaglia, porém, o fotógrafo não está apenas perto do fato – está dentro dele. É claro que em toda fotografia, de qualquer fotógrafo, a localização e a atitude de quem capta a imagem (e, por identificação, de quem a olha) é parte integrante dela, de uma forma ou de outra. Mas, no caso de Battaglia, a imagem não é só o resultado de uma observação mais ou menos aproximada, é um embate em que a fotógrafa está fisicamente engajada.
Da prisão de Bagarella, existem pelo menos duas imagens publicadas: uma saiu na primeira página do cotidiano L´Ora, em 12 de dezembro de 1979; a outra é a selecionada por Battaglia para exposições e catálogos. São parecidas, mas, na primeira, o preso olha para algum ponto à sua frente, logo à esquerda da câmera; nosso olhar cruza com o dele; os policiais parecem arrastá-lo, enquanto ele resiste, jogando o corpo para trás; acima da manchete, um texto comenta: “Após a prisão, perdeu as estribeiras diante dos fotógrafos”. Na versão escolhida para exposição, Bagarella desvia o olhar da câmera, mas o corpo é jogado para a frente, aparentemente na tentativa de se desvencilhar. Na primeira foto, a relação entre retratado e observador se dá à distância, pelo olhar ameaçador. Na segunda, a cabeça e o tronco de Bagarella pressionam a superfície da imagem, as mãos do preso e dos policiais lutam quase em contato com o olho. A lente, por sua vez, se infiltra entre o braço do policial e o abdome do preso. Não dá para se posicionar como mero espectador diante dessa foto.
Em outras imagens, o contato com pessoas e coisas chega ao limite da cegueira, como naquela terrível do assassinato de Piersanti Mattarella, em 1980, então presidente da Região Siciliana – e, por sinal, irmão mais velho do atual presidente da República italiana. É uma foto tirada quase de dentro do carro, quase na hora do crime. A filha da vítima ainda está no banco de trás, o rosto coberto pela mão – uma silhueta escura em movimento; do morto, que está sendo retirado do carro, enxergamos as pernas. Parece-me que a intensidade trágica dessa imagem, já quase insustentável, é reforçada ainda mais pelo volante em primeiríssimo plano do lado esquerdo, marcando o limite que a câmera não pode ultrapassar. A foto nos diz que quem a tirou está no meio do drama, quase sentimos o empurra-empurra às suas costas, a lataria da porta contra sua barriga.
A mesma pressão para dentro e para fora estrutura uma imagem feliz como Patrizia dando à luz Marta, com seu emaranhado de mãos, braços, ombros e pernas entrando e saindo do quadro. Ou sustenta o sarcasmo ácido de Recepção aristocrática em um jardim com raposa morta, com as duas mãos paralelas e simétricas furando a superfície da foto: uma do homem que segura a sombrinha, de quem se enxergam apenas o ombro e o lenço no bolso do paletó (as figuras parcialmente fora do quadro são fundamentais na maneira da Battaglia compor); outra segurando o copo da senhora cujo olhar se perde acima da lente. Poderíamos ser atropelados a qualquer momento por esses foliões um tanto bêbados – só a raposa morta olha para a câmera, e parece querer se relacionar conosco.
De resto, a proximidade levada até o contato físico não é a única forma de engajamento de que Battaglia dispõe: há envolvimentos mais distanciados, porém poderosos, feitos de gestos e olhares. As fotografias de crianças, e especialmente de meninas por volta dos 10 anos, são exemplares nesse sentido. Fotografar crianças, sabe-se, é uma tarefa insidiosa, e Battaglia se sai extraordinariamente bem. Para ela, fotografar garotas daquela idade, aliás, é quase uma obsessão, como ela mesma reconhece. Letizia tinha 10 anos quando sua família se mudou da tranquila cidade de Trieste, no norte da Itália, para a muito mais perigosa Palermo, onde não era seguro para uma menina como ela passear e brincar na rua. Daí a reclusão em casa, o sentimento de uma liberdade interrompida. Nessa experiência traumática, Battaglia identifica uma das causas de uma série de escolhas ulteriores: o matrimônio aos 16 anos, que se revelou outra reclusão; a maternidade precoce e a vida de mulher do lar, a crise psicossomática e, finalmente, a decisão, aos 36 anos, de abandonar o marido e se mudar para Milão, onde começou sua carreira de fotógrafa, levando consigo três filhas já adolescentes. Nos retratos das meninas, está subentendida, portanto, uma volta àquela experiência infantil, como se fosse possível reencontrá-la na expressão, nos gestos e na postura de meninas da mesma idade e, assim, de alguma forma, preveni-la. É um reconhecimento que, para funcionar, deve se dar de ambos os lados, na retratada e na fotógrafa. Battaglia foge à armadilha de buscar a espontaneidade na criança, no sentido de uma indiferença à presença da câmera. Ser fotografado é um engajamento, uma tomada de consciência que a fotógrafa desperta dando-se a ver, como um espelho. Não é necessariamente um momento prazeroso: na expressão das meninas, há interrogação, perplexidade, às vezes certo desconforto.
Talvez seja melhor, mais uma vez, recorrer a um exemplo. Outra foto icônica, entre as mais famosas, é a Menina com a bola: Letizia estava em um café com colegas quando viu um grupo de crianças jogando futebol e decidiu fotografar essa menina em especial. Ela deve ter estranhado o pedido, e ainda mais a posição artificial que, não fosse a bola, a tornaria quase um recorte bidimensional contra a porta arranhada. No entanto, das várias fotos tomadas, apenas nessa, diz Battaglia, sua expressão se tornou tão intensa a ponto de assumir o estatuto de uma revelação. Talvez fosse apenas constrangimento, ou vontade de voltar a brincar. Mas a potência do olhar, realçado pelas sobrancelhas espessas e pelas olheiras, dentro de um corpo tão miúdo; a mistura de pobreza e de elegância no porte, na roupa e no corte dos cabelos; a nota de dinheiro de pouco valor numa mão e a bola na outra; a porta arranhada – tudo isso se compõe por um instante em um sentido mais amplo.
A questão não é o que a câmera, como se fosse invisível, viu na cena. O verdadeiro assunto da foto é o que a menina parece ter visto na câmera. O que ela vê é algo invasivo chegando: a transição da infância à puberdade; da rua como espaço de jogo à rua como lugar de encontros mais imprevisíveis, mas também mais perigosos; de uma sociedade arcaica e familiar, talvez opressiva, mas capaz de lhe garantir alguma ordem, a uma moderna, que a deixa desamparada. Enfim: no instante em que assumiu aquela expressão, a menina foi a adolescência e foi Palermo.
A imagem é icônica, então não por ser facilmente redutível ao conceito geral, mas pelo momento único e irrepetível que a câmera surpreendeu a garota, e ela, de retorno, parece ver-se na câmera, e não gostar muito. De resto, acredito que a iconicidade de uma imagem, especialmente no caso de Letizia Battaglia, consista justamente nisso: registrar um fato singular e, ao mesmo tempo, representativo de muitos – representativo no sentido político do termo, de ser porta-voz. Os mortos, – e há muitos nas fotos da Battaglia –, cada um é um indivíduo: a mão apoiada na pasta de documentos do juiz Terranova; a sala de espera do bordel com o pôster da pin-up, na chacina de piazza Sant’Oliva; as ferramentas da oficina mecânica de Natale Albelli; os caixotes de frutas em A árvore secaa. Os mortos, diz Letizia Battaglia numa entrevista, não parecem mortos: parecem dormir. O que os mantêm agarrados à vida são justamente esses detalhes, esses gestos interrompidos. Olhando para essas imagens, às vezes lembramos de outras, mais antigas: O Massacre da rua Transnonain, de Daumier, por exemplo, no caso de Homicídio com placa de Palermo; ou o Toureiro morto, de Manet, em Foi morto quando ia pegar o carro na garagem, ou A árvore seca. Não se trata, obviamente, de citações eruditas, que seriam totalmente inoportunas, mas sim, provavelmente, de uma convergência na maneira de representar algo que esses artistas foram os primeiros a descobrir: a morte “moderna”, sem aparato, sem compostura, sem explicação, sem uma margem de segurança que a separe da vida. Uma morte nua, absurda, diante da qual todo registro fiel só pode ser, por si mesmo, um protesto.
Por outro lado, há meios antigos de resistência contra esse embrutecimento da morte. Letizia Battaglia tem grande familiaridade com o teatro. Já em Milão, frequentou e registrou em imagens o Colletivo La Comune, de Dario Fo e Franca Rame, referência do teatro de protesto (Fo ganharia o prêmio Nobel de literatura em 2007); participou dos laboratórios do polonês Jerzy Grotowski, um dos fundadores do teatro contemporâneo de vanguarda; mais tarde, dirigiu ela própria encenações, em teatros palermitanos (Uccidiamo il chiaro de luna, sobre textos futuristas) ou no Hospital Psiquiátrico na rua Pindemonte, onde desenvolveu várias atividades junto com os internos a partir da década de 1980. Essas experiências certamente fortaleceram sua sensibilidade aguda para a expressividade dos gestos – percebidos e registrados nos rituais religiosos, na devoção popular, nas festas, nas brincadeiras das crianças, em todo tipo de gente. Gestos de luto, de dor, de desespero, que às vezes poderiam indicar matrizes milenares, quase fórmulas de páthos warburguianas comuns a todas as culturas do Mediterrâneo – revistas, por exemplo, em imagens recentes do Oriente Médio –, e diferentes, por outro lado, das expressões contidas de dor, quase hieráticas dos povos da África subsaariana. Como, em outra foto extraordinária e terrível do assassinato de Vincenzo Battaglia, a mulher desesperada, descalça e ensanguentada, cuja postura, no entanto, poderia ser parte, por verdade e força, de um Lamento sobre Cristo, de Giotto. São gestos teatrais, se com esse termo não entendermos artificialidade, e sim a consciência de que toda morte é tragédia, e como tal deve ser tratada. Os gestos, especialmente os de quem a morte atinge mais de perto, talvez não retirem da morte o absurdo, mas pelo menos a reinserem num universo de significados e nos posicionam diante dela. Dão voz aos mortos, não os deixam sozinhos.
Pelo embate imediato com seu objeto, a fotografia da Battaglia é um desses gestos. Nos momentos trágicos como nos felizes, ela é essencialmente participativa. Nesse sentido, ela é sempre política. Vale a pena observar como as imagens da Battaglia e de seus companheiros de estrada (Franco Zecchin e a filha Shobha, entre outros) são diagramadas em suas publicações, especialmente na fanzine Grandevú, que ela fundou e ajudou a dirigir no final da década de 1970 e durante os anos 1980. Inseridas nessa diagramação, ladeadas por textos ora de denúncia, ora engraçados e irônicos, ora testemunhas de novas manifestações de gênero, classe e comportamento, as imagens de Letizia e dos outros fotógrafos de seu círculo estabelecem relações articuladas e revelam os laços que as une. Sinalizam, enfim, seu significado e sua postura de fundo, que é irremediavelmente rebelde.
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