O azul gentil de Eduardo Rozenthal
10 de julho DE 2019 |Elvia Bezerra
Eduardo Rozenthal é o título do arquivo em word que acabo de criar para escrever este texto. Nomeei-o do abismo onde fui lançada com o choque da notícia: o psicanalista que vinha para o almoço quase diariamente no Café do Instituto Moreira Salles, na Gávea, onde fez, de funcionários da casa, amigos, morreu sábado, 7 de julho.
Por volta de 2014, não me passava despercebido o casal de meia-idade que, olhos nos olhos, vez ou outra almoçava no IMS, refeição sempre acompanhada de uma garrafa de vinho. Era Eduardo e sua mulher, a astróloga Cláudia Lisboa – eu saberia depois.
Um dia, no almoço, em lugar de Cláudia, ele trouxe como companhia uma senhora jovial e bem mais velha. Eu, sentada à mesa ao lado, cadeira quase colada à dele, ouvia a conversa. Inevitável. Ela falava de perfume, e ele escutava, participante. Não consegui disfarçar o interesse no assunto. Durante a refeição, nos olhávamos hesitantes, os três, sorríamos cúmplices, até que, lá pela sobremesa, tomei coragem, me virei: “Clarice Lispector dizia: ‘Eu me perfumo para intensificar o que sou’”. Acrescentei que, para a escritora, perfumar-se é uma sabedoria e, dizia ela, que nunca se deve forçar a natureza: não gostando de uma fragrância, nada de insistir; o perfume deve traduzir a personalidade de quem o usa. Na hora do cafezinho, eu já sabia que a senhora ao meu lado era a mãe de Eduardo Rozenthal e àquela altura eu e ela também já declarávamos as nossas preferências de cheiros.
O perfume foi, desse modo, a senha para alguns almoços que eu compartilharia com ele ao longo dos últimos anos, ou os muitos cafés que tomaríamos quando eu chegava para trabalhar, no início da tarde, ao final da refeição dele e depois da minha, feita em casa. Falava do trabalho com paixão: da alegria de se dedicar ao ofício. Gostava da vida, mas não daquele modo estouvado de gostar com que se definem as pessoas “cheias de vida”. Amava-a de modo sereno, curioso, e, sem indiscrições, revelava o quanto a Claudinha, como se referia à sua mulher, fazia parte do bem-estar que demonstrava sentir.
Se estivesse com o jornal aberto sobre a mesa, eu procurava outra companhia, ou me sentava sozinha. Na maioria das vezes, ele saboreava a comida e, vendo-me entrar, me dirigia o olhar acolhedor. Eu, segura de que era bem-vinda, mas, em observação aos bons modos, perguntava se podia me sentar com ele. Conversávamos sobre trabalho, literatura, como se houvesse tempo para tanto, e, claro, psicanálise, ele sem se furtar a me esclarecer, com generosidade didática, a uma pergunta sobre determinado conceito psicanalítico. Conhecia bem a poesia de Drummond e ressaltou poemas que, na ocasião, traduziam meu estado de espírito – captava-o delicada e rapidamente. Disse-lhe versos de Bandeira. Escutava-me com vivo interesse; torcia verdadeiramente por mim – eu não duvidava. Acontecia de a troca exigir mais de um café, e depois eu subia para a minha sala, atrasada, não sem ouvir “tchau, minha amiga”.
“É seu irmão”, não temi arriscar, baixinho, tocando-lhe levemente o ombro, quando, certa vez, o vi acompanhado de um homem muito parecido com ele. Tão clara quanto a semelhança física era o clima de intimidade entre os dois, aquela intimidade respeitosa, que era como ele a exercia. Cumprimentei-os e saí. De outra vez, foi a filha. Nem teria sido necessário saber o grau de parentesco. Os olhos da moça, do mesmo formato dos do pai, não deixavam dúvida, mas ele fez questão de me apresentá-la, orgulhoso. A diferença é que os olhos dela têm, no azul, aquela fulguração que encanta e às vezes inibe os milhões de castanhos e pretos olhos dos brasileiros, enquanto os dele eram de um azul gentil. Desconfio que sempre tiveram o mesmo brilho discreto.
Tomada de espanto, agora constato o modo como sua presença diária foi se impregnando na Casa, assim como uma peça rara, algo como uma safira trazida da Índia que se incorpora ao ambiente de forma tão natural que deixamos de percebê-la na sua preciosa singularidade. A figura magra e firme de Eduardo imprimiu-se com sobriedade no hall da Casa, no cumprimento afetuoso aos recepcionistas – o Wagner, o Cícero, a Eliane, a Irineia –, nos corredores, na lojinha, onde visitava a Cristina, ou no Café, com uma palavra para o garçom, Rogério, ou para a Branca, a dona, ou para a Beth, a diretora da Casa, mas, por onde andava, jamais se ouviu uma voz que, em algum momento, pudesse soar inconveniente. Porque ele preferia acenar, sorrir, caminhar com suavidade, e, assim fazendo, passou a fazer parte do cotidiano da Instituição e do nosso.
Soube que teve tempo de se preparar para receber a “Indesejada das gentes”. Faz sentido. Dava-me a impressão de saber viver, e para isso é preciso saber aceitar o inelutável.
Como se não bastassem estes tempos sombrios de grandes apreensões em que vivemos, todos nós, dos seguranças da guarita ao superintendente, Flávio Pinheiro, todos nós teremos de aprender a não mais deparar com os olhos de azul gentil de Eduardo Rozenthal.
Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles
Programação
Nenhum evento encontrado.