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Rachel Valença, a literatura que dá samba

2 de dezembro de 2019 |

Carioca, uma das grandes especialistas em história do samba, Rachel Valença só foi conhecer de perto o batuque de uma escola bem distante do Rio de Janeiro, quando cursava Letras na Universidade de Brasília, na segunda metade da década de 60. Enquanto aprendia a dissecar a língua portuguesa com nomes como João Alexandre Barbosa e o filólogo Nelson Rossi, mergulhava também nos sambas imortais de Silas de Oliveira, um dos geniais compositores do Império Serrano, cantados pelos carnavalescos brasilienses. Consolidava-se assim a paixão pelas palavras e pela música brasileira que acompanha até hoje a pesquisadora, professora e escritora, que assume neste dezembro de 2019 a coordenadoria de Literatura do Instituto Moreira Salles, comandada nos últimos dez anos por Elvia Bezerra.

O trânsito fluido entre a literatura e a música, particularmente o samba, começou a ser desenhado na volta de Rachel ao Rio, em 1971. Seu coração já era definitivamente do Império, que mereceu dela o aclamado Serra, Serrinha, Serrano – O império do samba, livro publicado originalmente em 1981 em parceria com o então marido Suetônio Valença (1944-2006), que ela conheceu na UnB, e reeditado em 2017. Depois de trabalhar alguns anos como professora e de colaborar para o dicionário de língua portuguesa de Antenor Nascentes publicado pela Editora Bloch – “Foi minha primeira experiência como lexicógrafa”, conta ela –, entrou para a Fundação Casa de Rui Barbosa como pesquisadora em 1977, saindo em 2010 como diretora do Centro de Pesquisa, cargo que ocupou a partir de 1999.

“Sempre tive muita ligação com a língua, até mais que com a literatura, mas as duas coisas não se dissociam”, observa Rachel, que em 2004 ajudou a organizar, a convite da crítica Beatriz Resende, a coletânea Lima Barreto – Toda crônica (Agir). “Acompanho o IMS mais pela área de música, então quando fui chamada pelo Flávio (Pinheiro, superintendente executivo do IMS) pensei se estava à altura. Mas fui aluna de Alceu Amoroso Lima, não é possível que eu não tenha aprendido nada!”, brinca, lembrando os tempos em que cursava Letras na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio, de onde foi expulsa em 1964, com o golpe militar, porque integrava o diretório acadêmico e fazia política estudantil. Nos dois anos em que permaneceu ali, além de Amoroso Lima teve como professores também Celso Cunha e Afrânio Coutinho.

Rachel Valença, coordenadora de Literatura do IMS, novembro de 2019. Foto de Mànya Millen
Rachel Valença na biblioteca de casa: “Pela minha trajetória de vida não posso desligar literatura da música. Temos que descobrir as ligações para botar abaixo as divisórias, fazer uma coisa só”.

 

A possibilidade de mergulhar nos arquivos de escritores é algo que encanta Rachel, que passou boa parte de sua vida lidando com organização, preservação e difusão de acervos. Aos 75 anos e energia de sobra, ela lembra que sua longa passagem pela Casa de Rui foi um grande aprendizado em várias áreas, começando pela preparação e estabelecimento de textos críticos das obras completas de Rui Barbosa; passando pelo setor de filologia, onde colaborou com o Vocabulário Histórico-cronológico do Português Medieval (VPM), do lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha; e mais adiante com os projetos de edições da instituição.

Enquanto trabalhava com o português medieval, Rachel ingressou no mestrado em Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi aí, aliás, que as duas academias, a do samba e a das letras, se uniram definitivamente em sua vida. A dissertação de mestrado, feita sob a orientação de Evanildo Bechara, seria a edição de um texto medieval. Já “enfiada” no Império Serrano, Rachel conversou com Bechara sobre o significado de uma palavra num jongo da Serrinha. Ele maravilhou-se, e a língua popular tornou-se o foco do trabalho, intitulado Palavras de purpurina – A retórica do samba-enredo 1972-1982, apresentado em 1983.

“Era um pouco de sociologia da linguagem, mostrando como o compositor popular, para ser aceito, tem que usar aquelas palavras grandiloquentes”, conta a pesquisadora, que ajudou a estruturar o Museu do Samba, e segue na instituição como voluntária, responsável pela área de pesquisa e documentação.

Nos últimos anos na Rui Barbosa, à frente do Centro de Pesquisa, Rachel – que entre 2010 e 2017 ocupou a vice-presidência do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio – botou em prática a integração de fato entre as diversas áreas da instituição.

“Minha preocupação era que aquilo não virasse os ‘Escritórios Rui Barbosa’, em que cada pesquisador vinha, fazia seu trabalho e no final do dia ia embora. As áreas têm que conversar entre si. Então o Direito não podia ignorar o que a Filologia estava fazendo, o que o departamento ruiano estava fazendo, porque tudo era a mesma coisa”, conta Rachel. “Mudei até o layout do andar. Botei abaixo as divisórias, tinha que ser uma coisa só. As pessoas tinham que se entender como um todo”.

Embora ainda não tenha planos concretos para sua gestão no IMS, Rachel gostaria de exercitar na instituição o mesmo espírito de transversalidade.

“Pela minha trajetória de vida não posso desligar literatura da música. Como não posso desligar literatura do cinema, de tudo o que está no mundo. No IMS temos um acervo espetacular de música, fotografia, literatura... Temos que descobrir as ligações para botar abaixo as divisórias, fazer uma coisa só”.

Elvia Bezerra e a organização dos arquivos

Depois de dez anos à frente da coordenadoria de Literatura, Elvia Bezerra, que deixa o cargo mas permanece colaborando no IMS, produzindo textos sobre alguns dos arquivos, lembra que a ideia da transversalidade acontece num momento oportuno, com a base de dados dos acervos unificada.

“Numa instituição como o IMS, com essas características de pluralidade, essa integração só é possível depois do trabalho minucioso de arquivo, da indexação completa dos dados, que é algo que não aparece. A hora de aparecer é no momento da difusão desses acervos”, conta ela, que deixa para Rachel uma área estruturada, com grande parte do acervo descrita, além de boa parcela digitalizada. Há manuais que explicam tudo, até como pedir uma obra emprestada a outra instituição, por exemplo. E arquivos de titulares da área, de Ana Cristina Cesar a Clarice Lispector, de Rachel de Queiroz a Carolina Maria de Jesus, de Otto Lara Resende a Paulo Mendes Campos, de Erico Verissimo a Carlos Drummond de Andrade, entre muitos outros, estão totalmente descritos.

“Esse trabalho dos arquivistas é fundamental. Hoje todos os arquivos de Literatura estão acessíveis para pesquisa, uns completos, outros em processo de descrição, mas todos disponíveis”, conta Elvia, formada em Letras e Literatura, e autora de livros como A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Nise da Silveira (1995) e Meu diário de Lya (2002).

Além da organização dos arquivos, a gestão de Elvia foi marcada pela criação do site Correio IMS, do Clube de Leitura, e do Portal da Crônica Brasileira, projeto em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa. Sem contar as publicações originadas do acervo, como Mandacaru – poemas manuscritos nunca publicados da cearense Rachel de Queiroz, descobertos no IMS pela conterrânea Elvia, que escreveu para a obra um estudo introdutório sobre o modernismo no Ceará –, e De um caderno cinzento (Companhia das Letras), com material inédito em livro de Paulo Mendes Campos, preparado e prefaciado pela coordenadora de literatura.

“Foi um grande aprendizado. Esses dez anos coincidiram com o momento em que dei uma tarefa por terminada, uma experiência concluída. Experiência mais que enriquecedora, e um trabalho no qual tive uma grande liberdade, o que é um privilégio. Termino dizendo da minha grande alegria pela vinda da Rachel. Estou passando o bastão para uma pessoa que entende o que eu fiz. A conclusão do meu trabalho só é tão boa porque vou passar para a Rachel”, pontua Elvia.

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