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Leituras do acervo

Atores convidados leem obras do acervo do IMS.

Elenco
André LuEuler SantiGama GamaGlaucia LombardiJoice MarinoMarcia do ValleMariah Da Penha


Glaucia Lombardi

São Paulo

Atriz e dubladora, residente na Zona Norte de São Paulo. Formada em artes dramáticas pelo Conservatório Carlos Gomes, em Campinas, estuda atualmente na SP Escola de Teatro. Atuou em oficinas da Cia. Os Satyros. Estreou como atriz na peça O alienista, baseada na obra de Machado de Assis.

Chegar em casa
Rachel de Queiroz

Fala-se tanto em chegar em casa, mas saberás realmente o que é chegar em casa, irmão? Depois de anos e anos de ausência intermitente, a sensação de recuperar o que era nosso e largamos, ― a casa, dantes casa nova, virada agora em casa velha, vergando ao peso da massa de trepadeiras que outrora eram apenas finos fios verdes se enrolando em festões em torno das colunas do alpendre.

E as mangueiras, que deixamos com alguns palmos de altura, enchem de sombra braças de chão; e o cajueiro de seis meses caiu com o vento e assim mesmo deitado cresceu e engrossou, já; sem fazer diferença, com tanto tronco e tanta resina velha, dos cajueiros mais antigos que estão aqui diz que desde os tempos dos índios.

Os cachorros não são mais os cachorros antigos, nem se conhece a origem do casal de gatinhos que miam ao pé do fogão, tão mais donos da casa, os pequenos intrusos, do que nós próprios, que a ajudamos a construir com as nossas mãos. As laranjeiras não têm flor e em vão se aspira o ar procurando a única coisa que pode evocar o nome de primavera nestas latitudes quase equatoriais: o cheiro do laranjal. Lá está quebrado, junto ao banheiro velho, o coqueiro onde cantava a nossa graúna de estimação que o morcego degolou há vinte anos atrás. Degolada também vê-se no armário da sala a compoteira de cristal da minha avó, quebrada no fim da haste esguia como uma rosa decepada bem perto da corola.

Contudo, o que mais mudou é o que aparentemente não mudou nada. No açude velho, por exemplo, a água é nova; e quanta água nova já o encheu, já se evaporou, já; correu pelo sangradouro, desde o tempo em que nele nos banhávamos? Aguapés que nós moças arrancávamos e tecíamos em colares, sereis avós, bisavós ou apenas antepassadas remotas dessas que hoje abrem a corola leitosa de cheiro doce na penumbra da boca da noite? E já; que falamos em linhagens ― quantas gerações de piabas descobriremos que se sucederam em dez anos, se quisermos apurar direito a genealogia destas piabas de agora que nos rodeiam na água e nos beliscam as pernas, com a impudência, o atrevimento cândido que nem a passagem dessas centenas de gerações, nem lei nenhuma de evolução consegue alterar? Quantas saíram do ovo, simples fio gelatinoso dentro da água, e depois de comer e engordar se fizeram piabas adultas e amaram outra piaba, e tiveram filhos e por fim morreram? E tal como as piabas são as formigas tracuás, presentes em toda parte, e os aruás encaramujados nos degraus do banheiro do açude, e libélulas que lambem a água e tremulam as asas ao sol. Nada é o mesmo. Tudo parece o mesmo mas a verdade é que nada é o mesmo. Do que houve e já passou só resta a cópia em série das gerações seguintes ― e as folhas dos manacás, e os insetos, e os bichos grandes e os patos que pescam na água parada debaixo do carnaubal ― tudo é novo. Por isso que ao chegar e ao correr de coisa em coisa ― tudo aparentemente igual e imutável ― o primeiro e obscuro sentimento que nos atinge é de saudade, uma saudade que de início não se explica direito. Só aos poucos compreendemos que a vida da gente é comprida demais em comparação com a curta vida de quase tudo que amamos, seja um cachorro, uma planta ou um passarinho.

*

E carecemos de nos habituar à casa velha como se se tratasse de chegada em casa nova e desconhecida. Pois isso mesmo é o que ela é: nova e desconhecida. A sua própria velhice é uma novidade acrescentada ao novinho em folha das pinturas e da telha, no nosso tempo. Iguais são só as aparências; a realidade essencial de tudo mudou completamente. E correndo os quatro cantos do casarão e do pomar, no nosso coração se renova a sensação pungente e nunca mais esquecida do dia em que cruzamos na rua com a filha adolescente da nossa amiga de infância. Íamos nos dirigindo para ela de braços abertos, no alvoroço daquela semelhança que fazia do encontro primeiro um real reencontro. E eis que a moça passa por nós sem uma pausa de reconhecimento, indiferente, estranha, deslizando por nós o olhar ignorante, como luz pela vidraça ― simples cópia em carne e osso da amiga de infância que nos amou e que era quase nossa irmã e há tantos anos está morta debaixo do chão. Mortas ambas aliás ― a amiga e a infância.