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Pixinguinha na Lapa

Mural de 150 m2 dá novas cores à paisagem do bairro carioca

19 DE ABRIL DE 2021 |

Apesar dos pesares de 2021, neste ano o Dia do Choro (23 de abril) tem um motivo novo para ser festejado: Pixinguinha, aniversariante que inspirou a data comemorativa, foi homenageado com um grande mural em pleno bairro carioca da Lapa. A pintura, feita na lateral do edifício do Museu da Imagem e do Som (MIS), faz parte do projeto Negro Muro, criado pelo produtor e DJ Pedro Rajão e pelo artista visual Cazé para retratar personalidades negras nas paredes e nos muros do Rio de Janeiro.

 

Pedro Rajão e Cazé (Foto de Douglas Dobby)

 

Com 15m de altura por 10m de largura, o mural é o maior dos 14 produzidos por eles. A série foi iniciada em janeiro de 2018, um ano antes de a Estação Primeira de Mangueira vencer o carnaval carioca cantando “a história que a história não conta”, como diz o samba-enredo assinado por Tomaz Miranda, David Domenico, Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino.

“Nosso projeto vem de um questionamento dos monumentos públicos da cidade, que prestam homenagem quase sempre a homens brancos, em geral agentes da colonização: generais, condes, viscondes...”, enumera Pedro Rajão, 35 anos, carioca do Cachambi, na zona norte, e fundador do coletivo Leão Etíope do Méier. “Em nossas andanças pela cidade, que não são poucas, o que mais vemos são genocidas retratados como heróis, enquanto os negros parecem invisíveis.”

Para transformar a paisagem, Rajão juntou pesquisas e capacidade de empreender aos sprays e pincéis de Cazé. Começaram por uma homenagem ao músico nigeriano Fela Kuti, único estrangeiro da lista, e passaram a referências nacionais de atividades distintas: o dramaturgo e artista visual Abdias do Nascimento, o jornalista e escritor Lima Barreto, a vereadora Marielle Franco, a ialorixá Mãe Beata de Iemanjá, o músico Moacir Santos e a cantora Clementina de Jesus, entre outras.

Um trabalho recompensador, mas que não teve remuneração até o segundo semestre de 2020, quando, através de uma campanha de financiamento coletivo, o Negro Muro conseguiu cobrir suas despesas. Já o mural em homenagem a Pixinguinha foi produzido com recursos da Lei Federal Aldir Blanc, através do edital Fomentos a Todas as Artes da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.

“Quando estávamos pintando a Clementina na rua em que ela morou, no Engenho Novo, fomos visitados pela neta dela, a Vera de Jesus, que cantou para nós, num momento de muita emoção”, relembra Cazé, que tem 34 anos, é carioca de Copacabana e tem obras no exterior, como o mural retratando o poeta Amilcar Cabral, que pintou em Guiné Bissau a convite da Secretaria de Cultura local. “Era como se a própria Clementina estivesse ali, com a gente.”

 

Mural Pixinguinha. Arte por Negro Muro (Foto de Leo Guaranys)

 

Além do contato com as famílias dos homenageados, outra etapa importante do trabalho é a definição do local em que cada personalidade é retratada. “É fundamental que o território escolhido tenha uma relação com aquela figura histórica, seja por ter nascido, vivido ou trabalhado ali”, diz Rajão. “O que mais mexe com a gente é atuar no território dessas pessoas, conversar com os que conviveram com elas”, destaca Cazé. “Basta começar a cavucar para as histórias começarem a vir.”

O líder da Revolta da Chibata, João Cândido, foi retratado em São João de Meriti (RJ), onde viveu a maior parte da vida. Já o humorista e músico Mussum foi homenageado com um mural no Morro da Cachoeirinha, onde nasceu, no bairro do Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio. O compositor Cartola, embora identificado com o morro da Mangueira, foi pintado num muro na Rua dos Inválidos, no Centro, perto de onde funcionou o Zicartola – casa noturna de sucesso na década de 1960 e liderada por ele e sua companheira, Dona Zica.

Já Pixinguinha, carioca da Piedade que depois viveu no Catumbi, em Ramos e Inhaúma, está retratado no bairro onde iniciou a carreira profissional, em 1911 (aos 14 anos!), como flautista do conjunto do pianista Pádua Machado, que se apresentava na choperia La Concha, na Lapa. Outra relação territorial do músico é com o próprio MIS, onde deixou gravados dois depoimentos para a posteridade – em 1966 e 1968. E são do acervo do museu as três fotos usadas como base para o mural: duas solo e uma que reúne os músicos do espetáculo O samba nasce do coração, de 1957.

Já na antiga Pequena África – região do Centro que compreendia os bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo – Pixinguinha frequentou terreiros e fez seus melhores amigos, Donga e João da Bahiana, ambos filhos de mães-de-santo: as tias Amélia e Perciliana, respectivamente. Local e personagens decisivos em sua história, como disse o historiador Luiz Antonio Simas na entrevista de lançamento do mural realizada no perfil @negromuro do Instagram: “Nas minhas pesquisas sobre música de macumba, a primeira referência explícita à palavra umbanda está em Pixinguinha: No terreiro de Alibibi, que ele fez com Gastão Viana.”

 

Mural Pixinguinha. Arte por Negro Muro (Foto de Leo Guaranys)

 

A parceria se repete em outros números do repertório de Pixinguinha, como Festa de Nanã, Mulata baiana e os famosos Benguelê e Yaô (originalmente Yaô africano). Já no choro, a principal composição de Pixinguinha que remete a este ambiente é Urubatan, assim batizado com o nome de um caboclo do catimbó nordestino. Sem contar os “afrossambas” que ele assina com os inseparáveis Donga e João da Baiana: Ha! Hu! Laô!, Patrão, prenda seu gado, Que querê, Vi o pombo gemê e Xô coringa.

Nesses casos, destaca-se ainda o trabalho de Pixinguinha como arranjador – faceta que nos verbetes costuma receber um destaque aquém de sua vasta e decisiva atuação, nos discos e no rádio, a partir da década de 1930. Vale ressaltar que, como naquele tempo não havia crédito para arranjadores – nem músicos – das gravações, o levantamento dos arranjos de Pixinguinha se dá a partir de informações da época (como depoimentos de contemporâneos ou registros da imprensa) e da participação de conjuntos que eram dirigidos por ele.

É o caso, por exemplo, dos Diabos do Céu, liderados por Pixinguinha em gravações na Victor. É este conjunto o responsável pelo acompanhamento de duas “macumbas” lançadas pelo cantor Francisco Sena num disco da gravadora em 1935: no lado A saiu Meus orixás (Gastão Viana) e no B Quem tá de ronda (Príncipe Pretinho). Já com a Orquestra dos Batutas, também dirigida por Pixinguinha, a Victor lançou em 1932 o samba Capote do mangô é teu, composição assinada pelo pai-de-santo Faustino Pedro da Conceição (o Tio Faustino) com solo da soprano Elsie Houston. Todas essas músicas podem ser conferidas nesta playlist:

 

 

Esta vertente da obra do grande instrumentista, compositor e arranjador foi tema de um dos programas da série especial Pixinguinha na Pauta, produzida em 2016 para a Rádio Batuta com recortes diferentes sobre sua obra. Neste episódio, intitulado Pixinguinha e Mário de Andrade, a abordagem trata não só desta vertente afrorreligiosa da obra do veterano chorão, como também de sua atuação como informante do escritor modernista durante a produção do clássico Macunaíma, de 1928.

Este e outros olhares sobre a vida e a obra de Pixinguinha podem ser aprofundados em seu site oficial, inaugurado pelo IMS em 2017 e principal fonte de referência sobre o músico. Nele estão reunidas não só informações sobre sua trajetória, como também um amplo material fotográfico e destaques de seu acervo pessoal – sob a guarda do IMS desde o ano 2000. Sem contar uma área dedicada à sua vasta obra como compositor, arranjador e instrumentista, com gravações para ouvir e partituras para consultar.

Agora, quando a música brasileira comemora o 124º aniversário do maestro,o IMS publica também no site Pixinguinha um conteúdo especialmente produzido para a ocasião: a série Os arranjos de Pixinguinha, com seis videoaulas do arranjador e violonista Paulo Aragão sobre o papel do grande chorão como um dos definidores da sonoridade da música brasileira nas décadas de 1930 e 40, quando ela se estabeleceu como produto de consumo de massa através dos discos e do rádio.