Adeus a Tinhorão, o legendário
5 DE AGOSTO DE 2021 | Elizabeth Lorenzotti
“O Brasil não precisa de vanguarda, mas de retaguarda.”
José Ramos Tinhorão
“Já sou um sujeito longevo” – disse o sexagenário Tinhorão em um programa Roda Viva, no ano 2000 – “e serei muito mais. Então pode ter certeza que muitas dessas pessoas que me odiavam vão morrer antes de mim. E aí eu ficarei tranquilo, porque como a nova geração não terá preconceito contra o Tinhorão, lerá os livros do Tinhorão e achará que são bons”.
E ele tinha razão. O mais do que polêmico José Ramos Tinhorão, originalmente José Ramos – Tinhorão por uma brincadeira dos chefes do Diário Carioca, nos anos 50 – será estudado e lembrado como um historiador da cultura urbana brasileira.
“Está tudo documentado. Para me contestar é preciso contar outra história e isso nunca aconteceu.”
Sempre foi fiel ao seu método, o materialismo dialético. Entendendo que a História é a crônica dos homens no mundo, ou seja, de suas relações com a natureza e com os outros homens. Das relações de produção derivam-se as relações sociais entre os homens que resultarão no sistema capitalista, na divisão em classes. Cada classe tem suas ideias básicas admitidas como boas, ou sua ideologia.
“Uma pessoa singular, pela inteligência brilhante, pelo humor refinado, a cultura e a audácia intelectual, a coerência e o caráter”, escreveu o primeiro amigo das redações, Jânio de Freitas, na contracapa da biografia Tinhorão, o legendário. Ambos, no frescor da década dos 20 anos, se conheceram no Diário Carioca.
No dia de sua morte, 3 de agosto de 2021, liguei para Jânio, que já adivinhou e disse que incrivelmente tinha pensado em ligar para ele na sexta-feira anterior. Eu também pensei nele esses dias, digo, apenas sabia de noticias por mensagens com sua mulher, e desde que sofreu o AVC, há 2 anos e meio, não o via. Tenho certeza que Tinhorão não queria que o víssemos doente. Nunca vimos, era uma fortaleza, parecia invencível.
Por que eu teria escrito sua biografia? Eu era sua leitora na juventude, quando morria de rir com seus artigos no Pasquim, e ficava com raiva dele também, mas não deixava de ler. Texto brilhante, inteligente, cheio de ironia.
Por que eu teria chegado até ele? Talvez porque tenhamos algumas coisas em comum. Nas caronas que costumava dar a ele, nos fins de tarde de sábados, da rua Doutor Vila Nova, no Bar do Raí, até a Alameda Barão de Limeira, onde morava, às vezes eu colocava um CD só para ver a reação de quem dizia que não tinha mais prazer em escutar música. Lembro de Haiti, com Gil. Ele gostou.
Essa pessoa singular costumava peregrinar anualmente a Lisboa, para pesquisar na Torre do Tombo, inicialmente, e depois apenas para flanar e sempre ficava em Lisboa. No mesmo hotel, até três anos atrás. Como os gatos, cultivava hábitos. Não à toa casou-se com uma tutora de gatos e vivia cercado por eles.
Foi mesmo nessa época, há quase 3 anos, num sábado, que encontro com ele no bar do Raí, lendo a biografia que escrevi, lançada em 2010. E dizendo: “Mas ficou boa mesmo”. E eu: “Tinhorão não acredito, você não tinha lido ainda?”
Era assim o legendário que ficou famoso por seus perfeitos textos-legendas no Diário Carioca e virou lenda por toda a vida. Que teve a sorte de participar de grandes revoluções na imprensa, desde a implantação do lead. De conviver com grandes jornalistas e até Nelson Rodrigues, que o colocou como personagem em Engraçadinha, um conquistador que usava carros baratos. Tinhorão não perdoou, porque conquistador sempre foi. Mas carro barato? Jamais!
Ele me disse que a única coisa que não poderia faltar no livro era a foto de um Skoda tcheco, seu primeiro automóvel, comprado em 1961. Para rebater essa falsidade do Nelson... E foi publicada uma das fotos P&B do seu vasto arquivo pessoal.
E principalmente, teve a sorte de conhecer Cartola, Nelson, Bide, Ismael, Heitor e tantos outros sobre quem escreveu e a quem ajudou escrevendo e algumas vezes resgatando do esquecimento, que para esses homens do povo se traduzia em miséria.
Durante ao menos duas décadas, no seu escritório sabatino, sempre havia jovens que o escutavam, entrevistavam, queriam saber. E o pessoal do samba, também jovem, que sabe de tudo dessa história dos sambistas e dos sambas, e Tinhorão dizia que ficava bobo com eles, como é que pode?
A memória, Tinhorão, a memória que você tanto ajudou a cultivar. Viveu para isso, aliás. Sem bolsas de estudo, sem qualquer patrocínio, oficial ou não, vivendo de seu trabalho nas redações.
Um rapaz muito esforçado, estudioso, ávido pela leitura, rato de bibliotecas e sebos até o fim, erudito, conhecedor de Eça, Aluízio, Montaigne e tantos. Não conheceu facilidades na vida, mas obstinado, conseguiu o objetivo a que se propôs. Nós agradecemos.
Aliás, o Brasil só tem a agradecer. Mesmo eventualmente discordando dele.
Elizabeth Lorenzotti é jornalista e escritora, autora da biografia Tinhorão, o legendário.
Nascido em Santos (SP) e mudando-se para o Rio aos nove anos, começou a se interessar por música popular quando tinha entre 10 e 12 anos. Aos 20, tornou-se estudante da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Sua vida como jornalista freelancer teve início em 1951, na Revista da Semana. Assinava J. Ramos e fazia reportagens em parceria com o amigo e fotógrafo Humberto Franceschi. Em 1952, com 24 anos, ainda estudante de direito e de jornalismo, foi levado por Armando Nogueira – outro colega de faculdade – para o Diário Carioca como copidesque. Foi nesse jornal que José Ramos ganhou o apelido Tinhorão – nome de uma planta ornamental tóxica.
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