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Walter Firmo:

no verbo do silêncio a síntese do grito


Texto do curador

Sergio Burgi

Walter Firmo (1937) introduziu e incorporou desde cedo em sua prática fotográfica a noção da síntese narrativa elaborada em imagem única, construção de linguagem que busca a elaboração de sentido através de imagens construídas, dirigidas, muitas vezes mesmo encenadas, que sempre tiveram como substrato essencial uma clara consciência de origem, – racial, social e cultural –, amalgamada a um desejo permanente de confrontar e questionar os cânones e limites da fotografia documental, do fotojornalismo, da fotografia enquanto verossimilhança ou mera mimese do real.

Nascido e criado no subúrbio do Rio de Janeiro, filho único de pai negro e mãe branca, ambos paraenses, Firmo construiu a poética e a poesia de seu olhar voltado principalmente para a elaboração de um registro amplo e generoso da população negra e suburbana da cidade, olhar que estenderia em seguida para a população negra de todo o país, em suas lidas cotidianas, religiosidades, festas e múltiplas manifestações culturais, verdadeira ode à integridade, altivez, força, resiliência e resistência das pessoas negras, desejo permanente de justiça num país que insiste em permanecer estruturalmente estamental e segregacionista.

Walter Firmo percorreu e documentou incansavelmente inúmeras regiões do país. Construiu retratos icônicos de grandes nomes da música popular e da cultura brasileira. Enalteceu seus personagens e suas múltiplas manifestações culturais e religiosas. Construiu uma sólida trajetória na imprensa e na fotografia autoral que resultou em um vasto acervo dedicado principalmente à representação e visibilização do negro na sociedade brasileira. Num processo próprio de construção de linguagem, estruturado em torno da ideia quase que antropofágica de um “tableau vivant” dos trópicos, experimentou e estabeleceu um diálogo direto e inovador com nossa paisagem, população e luz, tropicais e transatlânticas, rurais e periféricas, sensuais e telúricas. Nesse sentido, trabalhou em bases equivalentes, porém antagônicas e opostas, às bases da experimentação pós-moderna, urbana, minimalista e racional, que caracterizou a fotografia experimental e conceitual dos anos 1960 e 1970 no hemisfério norte. Como escreve Firmo, “O Brasil é um desvario de cor. É ornamento, é febril, alucina. Fazer fotografia brasileira é tirar partido deste patrimônio. É ignorar os tons pastéis e endeusar os verdes e rosas, nacionalizando os temas. É esquecer o olho europeu e o americano e valorizar o que é nosso.” Decorre daí sua intensa experimentação formal e cromática em torno da luz e da cor, marca até aqui mais reconhecida de sua produção autoral. Entretanto, é necessário, frente à obra de Walter Firmo, percebermos e reconhecermos aquilo que efetivamente estrutura e dá corpo à sua obra, – sua negra cor –, aquela que efetivamente, em seu trabalho fotográfico, tece “no verbo do silêncio a síntese do grito”.

O texto e a escrita sempre o acompanharam, em sinergia com suas imagens. Seja através da leitura constante de Machado de Assis e Lima Barreto, escritores negros de nossa literatura, ou em seu próprio texto, como, por exemplo, o produzido para a série de matérias sobre a Amazônia que publicou no Jornal do Brasil em 1963, intitulado “Cem dias na Amazônia de ninguém”, escrevendo e fotografando sobre a região e que lhe conferiu o Prêmio Esso de Reportagem aos vinte e seis anos, ou ainda nos diversos textos posteriores de sua autoria que integram os livros já publicados sobre sua obra, Firmo estabelece pontes efetivas entre as múltiplas possibilidades das narrativas literárias e poéticas e suas próprias sínteses construtivas e visuais que caracterizam e individualizam sua fotografia.

É nesse contexto de investigação permanente de linguagens, portanto, que se constrói a obra de Walter Firmo. Preto e branco e cor se entrecruzam ao longo de toda sua trajetória na busca por construções imagéticas que trabalhem o tema e objeto central de sua obra – o enunciado da dignidade e altivez do povo negro no Brasil. Negritude e encantamentos, narrativas e experimentações, são estes os caminhos principais das múltiplas poéticas em permanente construção que conferem sentido ao lugar de origem, de fala e de pertencimento do artista e fotógrafo Walter Firmo, como evidenciado pelas obras selecionadas para esta exposição a partir de seu vasto arquivo, produzidas ao longo de sua trajetória de setenta anos ininterruptos na fotografia.

 

As citações entre aspas acima são de Walter Firmo e integram texto de sua autoria publicado no livro Walter Firmo. Antologia Fotográfica, Rio de Janeiro. Dazibao, 1989.