Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930
Texto da curadora
Heloisa Espada
Somente profissionais e alguns poucos amadores tinham câmeras fotográficas no Brasil do início do século XX. Ainda assim, a partir de 1900, cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belém, Porto Alegre e Belo Horizonte passaram a conviver mais e mais com a fotografia e o cinema, enquanto suas entranhas eram reviradas por reformas de impacto radical. Em paralelo, novidades no campo gráfico permitiram a impressão de fotografias em revistas ilustradas, assim como a rápida proliferação de cartazes, cartões-postais e outras publicações. Em 1907, foi lançada no Rio de Janeiro a revista Fon-Fon. Em 1912, a Kodak, em Porto Alegre. Ambas eram periódicos de assuntos gerais, com títulos que remetiam a dois dos principais símbolos de modernidade da época: o automóvel e a fotografia.
Reformas urbanas como o “bota-abaixo”, que, entre 1903 e 1908, expulsou a população de baixa renda e arrasou o patrimônio colonial do centro do Rio de Janeiro, e a inauguração da Cidade de Minas (depois chamada de Belo Horizonte), planejada do zero, em 1897, forjavam a roupagem moderna da jovem República. No entanto, uma Abolição mais do que tardia, proclamada apenas um ano antes do golpe que instituiu a República, fazia com que a modernidade daquele Brasil não fosse apenas sinônimo de atualidade e progresso, mas também de violência, apagamento e eugenia.
No Brasil, como no resto do mundo, o Estado rapidamente compreendeu o poder de persuasão do cinema e da fotografia. Durante a Primeira República (1889-1930), a produção fotográfica foi marcada por um viés patrimonialista, representante de uma classe política e econômica alheia às necessidades da população em geral. Numa sociedade marcada por desigualdades abissais, as novas mídias de massa foram, nas mãos do poder público, um instrumento ideológico em prol de um regime profundamente autoritário. Nesse contexto, houve pouco espaço para experimentações formais nos moldes do que ocorreu no hemisfério norte.
Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930 procura se afastar de visões oficiais e mostrar a fotografia em suas diferentes formas de penetrar no imaginário urbano: por meio da imprensa, do cinema, do cartão-postal, das revistas ilustradas e de uma produção amadora, que se pretendia “artística” ou não. Além disso, lanternas mágicas, panoramas e estereoscopias explicitam a vocação narrativa da imagem fotográfica, mesmo quando não está diretamente associada ao cinema. A ideia de uma linguagem visual moderna surge nos instantâneos realizados por Vincenzo Pastore e Francisco Rebello nas ruas de São Paulo e do Recife, respectivamente, nos anos 1910 e 1920. Num viés mais formal, por meio de closes e distorções, se materializa também em filmes como Tormenta (1931), Lábios sem beijos (1929) e, sobretudo, em Limite (1931), o primeiro fotografado por Igino Bonfioli e os dois últimos por Edgar Brasil.
Nesta exposição, no entanto, modernidade e modernismo são, antes de mais nada, conceitos imprecisos e carregados de contradições. A sofisticação da flora amazônica se contrapõe à deselegância da arquitetura das grandes feiras; cenas de trabalho infantil conflitam com o conforto dos interiores de casas burguesas; a delicadeza do ornamento floral no chapéu da mulher branca de feição rígida contrasta com a resiliência do homem de roupas frouxas e esburacadas dançando descalço no carnaval do Recife. Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930 é, de resto, um retrato incompleto de um território inapreensível em sua diversidade e amplitude. No ano do bicentenário da independência, este ensaio visual aponta para a persistência de semelhanças incômodas entre o passado e o presente do país que pensava ter um futuro brilhante.