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Iole de Freitas, anos 1970 / Imagem como presença


Cronologia

Iole de Freitas nasceu em Belo Horizonte em 1945 e aos seis anos mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou a estudar dança contemporânea e, entre 1964 e 1965, cursou a Escola Superior de Desenho Industrial. A partir de 1970 viveu por oito anos em Milão, na Itália, onde em 1973 começou a expor seu trabalho em artes plásticas. Nos anos seguintes percorre festivais e encontros de arte na Europa e no Canadá, e em 1975 participa da Bienal de Paris. De 1977 a 1981 integra diversas individuais e coletivas, quase sempre com foco em intervenções com meios não convencionais.

1970 - 1973

lole de Freitas (Belo Horizonte, 1945) segue para Milão em 1970, atuando como designer na Olivetti, sob orientação de Hans von Klier. A artista encontra uma cidade culturalmente vibrante e com grande influência no cenário europeu; para lá, convergiam as vertentes mais experimentais da arte contemporânea desde os anos 1960, e elas carreavam consigo uma rede poderosa de galerias, museus, críticos e publicações de arte. lole se vê tomando parte num universo ampliado de artistas, críticos e galeristas, no qual se entrelaçam a arte povera, a performance, a body art e a arte conceitual.

Iole testemunha o clima político radicalizado do período, com greves operárias, protestos estudantis e a atuação violenta de correntes fascistas, como também das Brigadas Vermelhas, grupo de extrema esquerda. O movimento feminista ganha destaque na cena italiana, e logra impor novas agendas ao contexto político internacional. O país que ela havia deixado também se vê imerso em turbulências, em face do endurecimento da ditadura militar; há por aqui, todavia, um meio estética e culturalmente vigoroso, açodado pelas intervenções do Tropicalismo e pela vitalidade e resistência da produção artística local. No curso da década, lole não perde o contato com os amigos no Rio de Janeiro.

Em 1971, lole e Antonio Dias, seu então parceiro e interlocutor, permanecem por cerca de três meses em Londres. Nasce Rara Dias, filha do casal (Rara aparece, ainda criança, nas filmagens de Memória 1 e Memória 2, incluídas nesta mostra). Retornando a Milão, em 1972, a artista produz seus primeiros filmes em super-8 e sequências fotográficas capturando o próprio corpo; nessas fotos e filmes, empenha-se em flagrar as marcas sutis que seu corpo deixa no espaço — superfícies de luminosidade difusa, envoltas em sombras, reflexos e transparências, com forte apelo físico e sensorial. O interesse pelo movimento, pela expressividade com que o corpo responde a ele, são questões centrais para as obras.

Elements e Light Work — os primeiros filmes — perscrutam espaços internos; ambos foram rodados no apartamento-estúdio da artista em Milão. São recessos envolventes, responsivos aos objetos que os habitam. A câmera busca atravessá-los, inquirindo através de janelas e cortinas e de outras superfícies translúcidas - convidando a passagens e precipitando mudanças abismais de escala, que comutam livremente o pequeno e o grande, o interior e o exterior. Ainda em 1972, lole parte com Antonio para uma estadia de cerca de seis meses em Nova York, o casal instalando-se num loft na Grand Street, no qual a artista roda parte do filme Exit; a outra parte da película é filmada em Milão. Mantém contato com artistas brasileiros que residem na cidade norte-americana.

Em 1973, lole começa a mostrar regularmente seus trabalhos. A primeira individual — na qual apresenta Elements e Light Work — acontece na Galeria II Diagramma, fundada pelo crítico e editor Luciano Inga-Pin, atuante na promoção da body art. A revista Prospects, que ele edita, publica escritos da artista e frames dos filmes. lole toma parte num circuito de arte com notável presença de mulheres, não apenas artistas, mas também criticas e curadoras. Retorna ao Rio, por breve periodo, e nesse mesmo ano organiza no MAM, junto com Antonio, a mostra coletiva Fotolinguagem — que traz obras de Christian Boltanski, Annette Messager, Katharina Sieverding, Duane Michals, entre outros. A artista apresenta suas sequências fotográficas, esta delicada operação em que seu corpo é desvendado no proprio ato de fotografar-se. Em São Paulo, participa da mostra Expo-projecao 73 e da 7ª Jovem Arte Contemporânea, no Museu de Arte Contemporânea da USP.

 

1974 - 1976

lole comparece a diversos festivais e encontros de arte europeus, sobretudo na Alemanha e na antiga Iugoslávia, e também no Canada; são eventos que propõem trabalhos experimentais, incentivando os “novos media” — com destaque para a produção fílmica e fotográfica de artistas. Em 1974, experimenta filmar em 16 mm, extraindo grande força expressiva de movimentos musculares repetidos, dos olhos, das narinas e da língua — o trabalho está presente nesta mostra. No mesmo ano (e no seguinte), lole participa, como artista residente, do Festival of Expanded Media [Festival de mídias ampliadas], de Belgrado, então um núcleo vibrante de vanguarda, frequentado por muitas artistas da body art, como Gina Pane, Katharina Siverding e Hanne Darboven.

Ainda em 1974, retorna ao Rio para a individual de suas sequências fotográficas, também no MAM. Na capital carioca, exibe Elements e Light Work na Galeria Luiz Buarque de Hollanda e Paulo Bittencourt. De volta a Itália, participa da exposição Nuovi media [Novas mídias], no Centro Internazionale di Brera, e se apresenta em mostra individual na Galleria Carla Ortelli, em Milão. Na revista Data, a crítica Barbara Radice comenta a complexidade simbólica que a faca — presente em mais de uma obra da artista — revela no trabalho. Para ela, não se poderia reduzi-la a um símbolo fálico, pois a vê surgindo sobretudo como um primeiro objeto do mundo técnico, da cultura:

“Se nós somos o nosso corpo, a busca de lole de Freitas pressupoe um tipo de esquizofrenia física entre o corpo e sua imagem refletida. [...] A faca é antes observada com curiosidade e distância, quase um objeto inesperado, proveniente de um mundo desconhecido, materializado diante de uma necessidade que ainda não basta para defini-lo. É a primeira intrusão neste diálogo fechado consigo mesma, a primeira vez que, diante de uma exigência precisa, torna-se necessário construir um instrumento e projetar ao redor de si um mundo cultural. Ao ter intimidade com o novo instrumento, aprende a usá-lo com circunspecção, quase com temor, a mão não o empunha, mantém-no com as pontas dos dedos (antes, a mão nem mesmo aparece, e a lâmina surge através de um pano branco lacerado). [...]. Nas áltimas obras, a faca, guiada pela mão, torna-se sua extensão.”

A artista se aproxima de Luciano Fabro, com quem manterá produtivo dialogo (ela exporá junto a Fabro em Roma, em 1977). Frequenta o casal Tommaso e Ciaccia Trini (ele, crítico de arte, editor e fundador da revista Data; Ciaccia, coeditora, presença vital na publicação). Destacadas autoras feministas interessam-se por seu trabalho: Lea Vergine o discute no livro II corpo come linguaggio [O corpo como linguagem], de 1974, e, em 1975, Annemarie Sauzeau-Boetti entrevista lole, em matéria para a Data, na qual aparecem também as artistas Carla Accardi e Marisa Merz.

Em 1975, a artista participa da Bienal de Paris, a convite de Tommaso Trini e Jean-Christophe Amman (diretor do Museu de Arte de Lucerna), curadores do evento. Comparece com a instalação Glass Pieces, Life Slices, que apresenta acompanhada de pequeno texto, no qual a artista comenta a descoberta de um corpo maleável, múltiplo, não condicionado pela premissa da verticalidade:

“..a imagem é delimitada, bloqueada/ o corpo fechado/ aprisionado/ por um círculo de sete espelhos/ abaixo/ a imagem/ atravessa/ a linha da terra./ um pé se levanta/rompe/ a rigidez/ do corpo-tronco/ sobrevoa cada espelho/ completando o/ círculo...”

A instalação na Bienal chamou a atenção da crítica feminista Lucy Lippard, que escreve sobre a obra, vindo a analisá-la também em seu livro From the Center/Feminist Essays on Women’s Art [Do centro/Ensaios feministas sobre a arte de mulheres], de 1976. Entre 1974 e 1976, o trabalho de lole aparece em revistas conhecidas por seu engajamento no debate da arte contemporânea: Heute Kunst; Data; Fotografia Italiana; Art Press; Flash Art; Art International; Studio International; e Art in America — entre muitas outras. Em 1976, a artista apresenta na Galleria Gian Carlo Bocchi nova instalação com obras da série Glass Pieces, Life Slices, na qual retoma questões da obra vista na Bienal de Paris. No mesmo ano, participa do evento Korpersprache [Linguagem do corpo], na Frankfurt Kunstverein e na Haus am Waldsee, em Berlim — entre outras mostras, muitas delas voltadas a intervenções de artistas mulheres.

 

1977 - 1981

lole segue participando, no período, de diversas individuais e coletivas, cujo foco é, quase sempre, ressaltar a potência crítica que se poderia extrair de intervenções com meios não convencionais — fotos, performances e filmes de curta-metragem. Em 1977, convidada por Sauzeau-Boetti e Gian Battista Salerno, a artista participa de Pas de deux, na Galleria La Sallita, em Roma. Parodiando a coreografia do balé clássico, o título focaliza dialeticamente o par masculino/feminino; os curadores haviam proposto que o espaço da galeria fosse ocupado por pares de artistas, e lole se apresenta ao lado de Luciano Fabro.

Em 1978, em Milão, a artista mostra Exit, instalação e performance, no Studio Marconi, cujo galerista, Giorgio Marconi, é um dos mais notórios promotores da arte contemporânea na ltália e na cena internacional. Na instalação, lole faz intervir alguns elementos, além dos espelhos e da faca, que sugerem, como estes, uma função narrativa; a promessa narrativa é lançada ao silêncio, como ademais ocorre em outras instalações da artista. Exit, talvez um comentário à narrativa fílmica de suspense, ao modo como este acena ao publico, oferecendo-lhe o drama de um corpo feminino, ao fim e ao cabo frustra a presumida função narrativa; há sombras, projeções e recessos insondáveis — o drama do corpo é, precisamente, o que falta neste cenário.

Ainda em 1978, a artista é convidada a participar de Arte e cinema, organizada por Vittorio Fagone na 38ª Bienal de Veneza; a convite de Sauzeau-Boetti, ilustra o livro Donne, povere, matte [Mulheres, loucas, pobres] (Edizione delle Donne, Roma). Retorna ao Brasil, levando a Galeria Arte Global, em São Paulo, a convite de Raquel Arnaud, um conjunto de sua produção. Em 1980, participa da coletiva Camere incantateEspansione dellimagine [Câmaras encantadas — Expansão da imagem], no Pallazzo Reale, de Milão. Em 1981, apresenta, na 16ª Bienal Internacional de São Paulo, nova instalação com obras da série Glass Pieces, Life Slices. Projetores de slides mostram as imagens da série decupadas, enfatizando o processo de fragmentação do corpo e introduzindo um lapso temporal na projeção da sequência.

No inicio da nova década, a artista revela inédito interesse pelos materiais: tecidos, tiras de borracha, tubos plásticos flexíveis, fios de cobre, latão e alumínio — todos eles materiais moles, dúcteis, responsivos ao toque e presença. Não obstante a aparente guinada em relação à obra anterior, o corpo e o universo complexo e contraditório de seus afetos seguem como questão crucial na obra de lole.