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Flieg. Tudo que é sólido


Texto da curadoria

Sergio Burgi*

Hans Gunter Flieg, nascido em Chemnitz na Alemanha em 3 de julho de 1923, cresceu em uma família judaica de classe média. Após o acirramento do extremismo nazista contra os judeus, ocorrido na noite de 09 de novembro de 1938 ("Noite dos Cristais"), a família de Flieg decide-se efetivamente pela emigração. Entre maio e julho de 1939, Flieg estuda em Berlim com Grete Karplus, que fora fotógrafa do Museu Judaico de Berlim e lecionava em seu apartamento a profissão para jovens aprendizes. É com esta bagagem inicial no aprendizado da fotografia, tanto no campo autoral como no profissional, que Flieg desembarca no Brasil junto com a família em dezembro de 1939 aos 16 anos de idade, estabelecendo-se em São Paulo. Em 1945 inicia sua trajetória como fotógrafo profissional, iniciando uma prática de mais de quarenta anos no universo da fotografia de indústria, publicidade, arquitetura e artes.

A releitura do acervo de Flieg neste ano em que o fotógrafo completa 100 anos, – em que já nos encontramos na terceira década deste século XXI caracterizado pela construção da sociedade do conhecimento e da informação, em oposição à sociedade industrial de meados do século passado –, permite que sua obra seja interpretada dentro de novas perspectivas. Seus registros iniciais do então novo país e de seus habitantes são produzidos paralelamente a um refinamento crescente de sua fotografia industrial e profissional, sempre com uma elaboração formal muito consciente. Tais características podem ser observadas tanto no uso da tradicional câmera de grande formato, como no uso da relativamente nova câmera Leica de pequeno formato, que estabeleceu, a partir da década de 1920, as bases de uma nova linguagem no campo da fotografia no período entreguerras. A partir dos anos 1940, o trabalho de Flieg foi fortemente influenciado pela modernidade europeia, aliando o domínio na elaboração formal da imagem fotográfica a um absoluto controle da iluminação, da exposição e do processamento da película. Essas imagens extremamente elaboradas, produzidas em sua maioria como trabalhos comissionados, principalmente as fotografias de indústrias e de produtos, nos direcionam para um novo universo imagético, voltado para o “êxtase das coisas”. Nele, a fotografia passa a ser a ferramenta por excelência para o registro e a visualização dos objetos da sociedade industrial, bem como para suas subsequentes comercialização e circulação, já que a publicidade e a propaganda, especialmente a partir dos anos 1950, incorporaram maciçamente a fotografia a suas ferramentas.

O trabalho de Flieg foi realizado dentro da perspectiva da escola alemã da Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit), voltada para o registro fotográfico direto dos objetos industrializados e naturais, como proposto por Albert Renger-Patzsch em sua célebre publicação Die Welt ist schön, bem como para o registro do espaço industrial, de suas instalações e de seus equipamentos. A obra de Hans Gunter Flieg constitui, portanto, uma possibilidade efetiva de contribuição para a compreensão das atuais estruturas formadoras da sociedade contemporânea, seja no plano direto e objetivo da documentação da cultura material como também no plano mais abstrato da representação simbólica e criativa destas estruturas. Por outro lado, a fotografia de Flieg relaciona-se também com elementos da posterior retomada de uma objetividade contemporânea, de caráter mais conceitual e crítico, como no projeto de documentação seriada dos elementos construtivos e arquitetônicos de uma sociedade industrial já em seu ciclo entrópico, representado principalmente pelo trabalho do casal Bernd e Hilla Becher no pós-guerra. A obra deles apresenta a ambivalência da própria objetividade fotográfica, agora trabalhada em um sentido crítico pós-moderno; é isso que, em última análise, libera as imagens de seu contexto original e permite, dessa maneira, leituras formais e poéticas dos objetos e equipamentos registrados, que transcendem sua dimensão referencial e documental. A fotografia industrial de Flieg, produzida entre as décadas de 1940 e 1980, sempre de alto rigor formal, permite igualmente que estruturas, equipamentos e objetos industriais registrados de maneira objetiva e direta conduzam, em muitos casos, a imagens de forte viés abstrato, ampliando e atualizando a relevância da produção do fotógrafo no âmbito da fotografia moderna e contemporânea no Brasil.

A obra de Hans Gunter Flieg e seu tema principal – a industrialização do país a partir do parque fabril de São Paulo e a consequente expansão de uma sociedade de consumo baseada na intensa circulação e comercialização de produtos, em um cenário urbano cada vez mais adensado, numa lógica de realização e acumulação de valor estabelecida desde a revolução industrial do século XIX na Europa –, nos remete diretamente para a presença do conceito de “aparato”, nos termos propostos por Vilém Flusser em suas reflexões sobre o papel da imagem na sociedade atual. Segundo Flusser, viver em função dos aparelhos e dos ciclos cada vez mais intensos de consumo é continuar a viver sob a superfície de caixas pretas, que obscurecem e enfraquecem os sentidos. O dilema, como aponta Flusser, reside exatamente na produção e utilização crítica das imagens técnicas, ou imagens por aparato, no mundo contemporâneo: “Seu propósito é serem mapas para o mundo, mas passam a serem biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens.” As presentes transformações que estamos enfrentando no campo da informação, do conhecimento, da comunicação e da própria indistrialização, com o crescente processo de utilização de sistemas de aprendizado por máquina associados a intensa monetização e concentração de capital em um reduzido número de grandes empresas de tecnologia nos levam a enfrentar novamente um novo ciclo de grandes incertezas e tensionamento social, econômico e cultural.

O olhar que nos oferece Flieg sobre uma sociedade industrial que se quis e se fez moderna, sem romper entretanto com os mecanismos de reificação, alienação e poder de seu tempo, nos leva a refletir agora, décadas após, sobre uma sociedade pós-industrial igualmente imersa em profundas e radicais transformações, onde mais uma vez, “todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profano, e os homens finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos”.(2)  O futuro dirá se o processo social e econômico que nos trouxe até aqui, – neste limiar de um novo e profundo ciclo de transformação da sociedade que conhecemos, agora imersa em intensa produção de conteúdos e produtos por algoritmo –, será capaz de enfrentar o dilema moderno da emancipação coletiva e individual, em parte representado nas imagens produzidas por Flieg durante o ciclo de industrialização e consumo em São Paulo nas décadas de quarenta a oitenta. Nos tempos atuais, entretanto, o eixo desloca-se da produção e do produto industrial para o campo da comunicação e do conhecimento, onde conquistar a liberdade é necessariamente conscientizar-se das estruturas que regem as imagens, as informações, os programas e os aparelhos. Como afirma Vilém Flusser, “a tarefa da filosofia da fotografia é dirigir a questão da liberdade aos fotógrafos. [...] Filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível.”

A obra fotográfica completa de Hans Gunter Flieg é composta por mais de 59 mil negativos e fotografias e contém registros fotográficos que se iniciam ainda na Alemanha e se estendem até meados da década de 1980. Em julho de 2006, foi incorporada ao acervo do IMS e está, desde então, disponível e aberta para pesquisas e estudos de seus importantes aspectos documentais e estéticos.

* Sergio Burgi é formado em Ciências Sociais pela USP. Cursou Mestrado em Conservação Fotográfica na School of Photographic Arts and Sciences, do Rochester Institute of Technology (EUA), com diplomas de Master of Fine Arts in Photography e Associate in Photographic Science. Foi coordenador do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da Funarte, entre 1984 e 1991. É membro do Grupo de Preservação Fotográfica do Comitê de Conservação do Conselho Internacional de Museus (ICOM). Desde 1999, coordena a área de fotografia do IMS.

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