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Madalena Schwartz: As metamorfoses


Texto da curadoria

Áudio com a leitura do texto

 
As metamorfoses propõe uma imersão no longo ensaio fotográfico que Madalena Schwartz começou a produzir em 1971, quando passou a retratar travestis, transformistas e figuras da noite paulistana. O tema não estava longe: estava nas ruas por onde ela passava, indo e vindo entre seu apartamento no edifício Copan e a lavanderia da família Schwartz, na rua Nestor Pestana. E aparecia também nos teatros, nos programas de televisão, nas revistas ilustradas daqueles paradoxais anos de chumbo, nos quais as questões de gênero ganhavam força no âmbito do pop e da contracultura, ao mesmo tempo que a vida política sufocava sob o jugo militar.

Fiel a seu formato fotográfico de predileção – o retrato –, Madalena Schwartz dedicou boa tarde de seu tempo, nos anos seguintes, a fotografar figuras já célebres, como Ney Matogrosso, os Dzi Croquettes, Elke Maravilha ou Patricio Bisso, e estrelas de brilho breve, mas intenso: atores e atrizes, performers e dançarinas, travestis que frequentavam as boates do centro de São Paulo e demais “metamorfoses ambulantes”, para usar a fórmula de uma canção da época. Não o fez, contudo, por empenho documental ou fotojornalístico. Nos ambientes fechados em que trabalhava – estúdios, camarins e, sobretudo, seu próprio apartamento –, o primeiro consistia em abrir espaço para que seus e suas modelos se sentissem à vontade para deixar vir à tona o imaginário que cultivavam em si, fosse este de ordem erótica ou estética, de gênero ou de cor, eufórico ou melancólico, boêmio ou cinematográfico. Suas fotografias nasciam de um gesto de hospedagem do outro.

Mas como explicar o interesse e o empenho que dedicou ao tema de As metamorfoses? Talvez a resposta esteja nas circunstâncias árduas em que foi se formando seu olhar. Fazia apenas três anos que a Primeira Guerra Mundial terminara e o Império Austro-Húngaro caíra por terra quando Madalena Schwartz nasceu em Budapeste, em 1921 – e não passariam tantos anos antes que a menina judia, órfã de mãe, emigrasse para a Argentina, em 1935. Uma vida típica de tantos imigrantes naquele momento terrível do século XX, arrematada pela vinda para o Brasil, já casada e mãe de dois filhos. E se foi em São Paulo que se produziu sua própria metamorfose, não se deve esquecer a que ponto esta se deveu ao acaso: em 1966, aos 45 anos, caiu-lhe nas mãos uma câmera fotográfica, prêmio dado a um dos filhos num programa de entretenimento na TV. Teve início então uma história vertiginosa. Depois de cumprir uma formação básica no Foto Cine Clube Bandeirante, Madalena iniciou uma carreira que a levaria a uma primeira exposição individual no Masp (já em 1974), às encomendas da imprensa, ao trabalho para a Editora Abril ou para a Rede Globo e, por fim, a instalar um pequeno estúdio no mesmo edifício Copan em que vivia.

Talvez algo dessa história pessoal explique a energia que Madalena Schwartz dedicou ao ensaio iniciado em 1971; talvez a fotógrafa tenha entrevisto, nessas faces e nesses corpos à margem da norma imperante, algum traço de seu próprio semblante de estrangeira e de imigrante, de judia e de mulher. Pode ser. A própria fotógrafa não deixou resposta – ou não deixou outra resposta além das fotos que produziu. Estas Metamorfoses pedem, pois, por decifração, contemplação, atenção, empatia – ainda mais agora, quando a norma tenta novamente se impor com a violência e a indiferença que lhe são características.