Idioma EN
Contraste

Stefania Bril e o livro fotográfico

Aproximações críticas


Livros em exibição

CRAVO NETO, Mario. Os estranhos filhos da casa. Salvador: Áries, 1985.

 

Texto de Stefania Bril

Cravo Neto, luz e sombras
Iris Foto, n. 391, abril de 1986

São azuis, porém é preto e branco. Contraste e interpenetração, cumplicidade e distância. Orgulho e deboche, reserva e abertura. Olhares companheiros: um indaga o outro, depois caminham juntos para esbarrar no olhar da câmera e do fotógrafo. Apanhados na hora. Síntese baiana, diz Mario Cravo Neto. É por isso que virou capa. Poderia ser qualquer outra das imagens que Cravo Neto arrancou do universo baiano e aprisionou dentro das páginas do livro.

Você entra no livro pela cor. É vermelho-alaranjado, é branco luminoso, é negro brilhante e opaco, é o azul. Aliás, os azuis: azul-gelo, azul-mar, azul-noite, azul-luz e… azul-sombra. Porque até as sombras no livro de Mário são luminosas. Parece impossível, mas são. Ausência de luz, luminosa? Mário o consegue. A sombra dançante que parece ter saído, agora mesmo, do cordão carnavalesco, ainda toda requebrada, projeta-se nas tábuas do barracão; distraída, perde a sua negritude e dissolve-se, dentro da parede azulada. Sombra azul também. São sombras coloridas, são sombras curiosas. Rebelam-se contra as distâncias, aquelas que existem no mundo real. No seu mundo não há fronteiras físicas: um corpo aqui, o outro lá. É mundo de interpenetrações. Então uma sombra escapa de um corpo jovem, esguio, dourado e invade o outro, displicente também. Deita-se e… espia, lá dentro, para conhecer melhor os segredos do companheiro.

São cores de todas as cores, são cores de todas as texturas. Você passa a mão na página lisa e… milagre. O da fotografia, o da leitura. (Você sabe, e muito bem, que o leitor, uma vez amarrado nas páginas do livro — é isso que acontece com o livro de Cravo Neto — torna-se o seu coproprietário, o seu coautor. As imagens, gulosas, que já tinham apanhado a realidade, que já tinham devorado o fotógrafo, agora, ainda insatisfeitas, incorporam um outro elemento: o leitor!) Na superfície lisa da imagem, você sente a aspereza azul da tábua, a saliência preta de um prego. Instintivamente você recua a mão, quase que machucado com o rasgo luminoso da madeira bruta. Você tenta apanhar a luz, transparente. Ela escapa, o fotógrafo era mais rápido. Captou-a para modelar uma silhueta afinada e um avental branco; os dois transformados num vaso requintado feito de pinceladas incisivas e amassadas: escultura instantânea, feita com luz e câmara.

Página — cor, página — luz, página — textura. E ritmo também. As imagens do livro vibram, fluem. Constroem-se “casas”. Os banquinhos ordenam-se: no começo ainda indecisos, pincelados com paletas de todas as cores, um verdadeiro ateliê de pintor. Transformam-se em telas abstratas, feitas de linhas geométricas que adquirem perspectivas. Superfícies, como se fossem volumes. É Mario, fotógrafo, editor, diagramador, que impõe o ritmo ao seu livro. Liberdade de criação, total. É ele quem amarra as cores, página por página: os amarelos se seguem e se interpenetram, o azul se confronta com o vermelho, para vestir os dois corpos dourados. Sobra um pouco de tinta? Mario, fotógrafo, as encanta com uma pincelada larga que penetra cada poro da madeira áspera. Sobra um feixe de luz? Mario, gráfico, fragmenta-o mais ainda: um feixe para embaralhar um pouco mais o cabelo crespo, dourado da menina; o outro, sóbrio (será que existe um feixe sóbrio? Existe, sim. A prova está lá, na foto de Cravo Neto) se concentra no braço mulato da garota e distribui tranquilamente o seu calor entre os territórios, azul e dourado. Há imagens que precisam de “ar” feito de moldura da página branca; há outras que “sangram” na página inteira. Corpos fortes: branco musculoso, preto liso, lado a lado, parecem explodir dentro do livro. Corpos, posseiros do espaço.

As páginas são hospitaleiras, como os barraqueiros, os “filhos da casa”. Daquela casa andante, feita de tábuas e cores, que embarca em caminhões nos primeiros dias de dezembro, escolhe o seu lugar e instala-se: cor, ritmo, cachaça, som, dança, braço. Festa. Sai da Conceição, emigra para Pilar, atravessa Rio Vermelho e… termina a sua peregrinação na Pituba. No caminho encontra os “estranhos”, você, eu. Convida. Você entra. Quem sabe, é dentro desta barraca, onde a luz do sol, ao atravessar uma fresta, transformou-se num spot luminoso, onde o colarinho de cerveja serviu de rebatedor de luz, que você se deixará arrastar numa conversa e seduzir pelo sorriso aberto. Tomará um chope e deixará a festa fluir dentro de você. Agora, não mais “estranho”, mas já “estranho filho da casa”. Dentro da realidade e da imagem. Que Cravo Neto, fotógrafo amigo, apanhou especialmente para você.