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Contraste

Stefania Bril e o livro fotográfico

Aproximações críticas


Livros em exibição

DENIZART, Hugo. Região dos desejos. Rio de Janeiro: ed. do autor, 1984.

 

Texto de Stefania Bril

O retorno à Região dos desejos
Iris Foto, n. 380, abril de 1985

Diante do livro-objeto, livro-sanfona, você arrisca e faz um gesto desmedido. De repente o livro abre-se num painel gigante. Tortura visual, caleidoscópio das imagens. Uma loucura.

É uma loucura feita de rasgos das vidas, feita de fragmentos das imagens. Fragmentos para se chegar mais perto do ser humano. Fragmentos para explodir o mundo preestabelecido e amarrá-lo de novo, feito de individualidades recuperadas.

Hugo Denizart, psicanalista e fotógrafo, coordenador do projeto Juliano Moreira, dentro do Programa de Ressocialização do hospital psiquiátrico de Jacarepaguá (RJ), apostou no impossível; anarquista da imagem, teimou que descobriria um ser humano dentro do estigmatizado, desumanizado, rotulado “louco”. Apostou e conseguiu. Filme, exposição e agora o livro: Região dos desejos. Também diferente, inconformado. Atingir o leitor através de uma tela gigante feita de vidas. Dobradas. Como o é o livro. Livro dobrado como o são as vidas. Imagens que ferem, quem sabe, como aquela faca, a da foto que, inocente, teima em cortar apenas o óbvio, o alimento. E mesmo assim induz a pensar que poderia transformar-se numa faca assassina. Interpretação “normal” do mundo diferente, que foge à normalidade. Ou vice-versa?

A tela caleidoscópica é feita das imagens que se encadeiam. Às vezes agrupam-se, adensam e ficam paradas: corpo a corpo, mão contra mão. Imagens que, repetidas, mas nunca iguais, aglutinam-se e reforçam o clima de promiscuidade, da falta de espaço (dentro do espaço de 7 milhões de metros quadrados), de falta de ar. Falta de tudo. Às vezes as fotos seguem um ritmo cinematográfico: fotogramas que contam uma história, como a de um amor desmedido, possessivo, protetor entre o ser humano e uma boneca. Um ser indefeso a defender um outro, inocente. Então ele cobre o rosto da boneca. É preciso ocultar a realidade bruta diante do olhar da boneca-criança. É preciso preservá-la, isolar. O habitante da colônia já sabe como isolar-se do mundo louco (o de dentro ou o de fora?): é só agarrar-se às coisas “sem importância” — barbante, caixinha, flor, foto — propriedades suas exclusivas; é só tapar os ouvidos, ficar surdo; é só fechar os olhos, ficar cego. E a boneca, de olhos fechados pela mão amiga, não vai ver e… nem ser vista. Como uma criança.

As paredes internas da colônia formam minitelas, ou telas gigantes, colagens incríveis que surgem mesclando desenhos, cartazes, fotos, objetos, lembranças da vida, a de “antes”. E, mesmo em companhia das imagens, o habitante da colônia permanece solitário. E sonha. É um sonho embaçado, desfocado, sem forma. Hugo aconchega o “paciente” dentro de um véu de esquecimento, azul-esverdeado. Um véu de paz colorida.

O livro é feito de rasgos das imagens. Contradição: são rasgos ordenados de modo apurado. Amarrados sob o olhar exigente do fotógrafo. No mundo louco, requinte de cor; vermelho e verde, flor e vestido; vermelho e verde, faca e alimento; e as mãos, negras brilhantes. Requinte de cor: verde e amarelo da bandeira nova que incorpora um ser humano crucificado através das imagens fragmentadas. Requinte do desenho que faz coincidir as margens fotográficas, que ousa colar à cor o branco e preto. Telas novas onde cada fragmento possui a própria linguagem, onde juntos adquirem um significado novo, coletivo.

Os textos seguem o ritmo visual. Rasgos. Parece difícil ordenar à palavra que seja só racional, calma. Ela se faz poesia, no texto feito de grito que sem força estende a mão (Roberto Pontual); ela se faz inquieta e atenta, a “escutar as imagens”, a indagá-las indagando a si própria (Miriam Chnaiderman); ela se faz desafiante ao dilacerar o cinzento em pedaços, ao encontrar as imagens e palavras da cor da individualidade, recuperada (Hugo Denizart).

É um livro-impacto. Um daqueles impactos raros que não se dissolvem em esquecimento. Impacto teimoso que se encrava em você, fundo. E se torna seu companheiro para sempre.