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Zanele Muholi: Beleza valente

IMS Paulista

Textos da exposição

Texto da curadoria

Beleza Valente

Expoente do ativismo visual contemporâneo, Zanele Muholi trabalha para garantir direitos e respeito à população negra LGBTQIAPN+ da África do Sul. Através da fotografia, Muholi apresenta o cotidiano de sua comunidade, valorizando a beleza, o afeto e a perseverança, mas também denunciando injustiças, agressões e violências. Esta retrospectiva, inédita na América Latina, reúne a produção de Muholi dos anos 2000 até hoje.

Muholi nasceu em Umlazi, Durban, em 1972, durante o regime do apartheid (1948-1994), que institucionalizou a segregação racial na África do Sul para ampliar os privilégios da elite branca do país. O fim do apartheid e a nova Constituição, implementada por Nelson Mandela em 1996 – que proibiu a discriminação racial, sexual e de gênero –, não foram suficientes para deter o racismo, o preconceito e os crimes de ódio contra a comunidade LGBTQIAPN+. A fim de lutar contra essa realidade, Muholi estudou fotografia e passou a fazer reportagens que expunham episódios de violência, especialmente contra mulheres negras lésbicas. Em 2004, seu trabalho ganhou atenção nacional.

Com o passar do tempo, Muholi trocou as fotografias de denúncia por retratos que celebram vidas e pavimentam o caminho do empoderamento. Em Faces e fases (2006-), série que ganhou projeção internacional pouco tempo depois de ser iniciada, Muholi convida cada participante a escolher a forma como deseja se apresentar, construindo uma relação de troca, respeito e confiança, que está presente em todos os seus trabalhos. Esse imenso e contínuo arquivo visual da comunidade LGBTQIAPN+ sul-africana é uma resposta contundente à falta de medidas concretas para garantir os direitos estabelecidos na carta constitucional.

O ativismo de Muholi ultrapassa as fronteiras sul-africanas e a produção fotográfica para incluir o amparo a vítimas, o financiamento de artistas, a manutenção de residências e a concepção de plataformas online, como o site Inkanyiso, que permite à comunidade narrar suas próprias histórias e lutar por seus direitos.

Muholi deu início à série Somnyama Ngonyama em 2012, retratando-se em diversas cidades do mundo com adereços comuns, encontrados em casas e quartos de hotéis. Com seu negrume exuberante e olhar desafiador, Muholi afirma sua beleza e responde à maneira como a fotografia foi usada ao longo da história para tipificar e subjugar grupos étnicos e sociais em países colonizados. Fazer-se visível em seus próprios termos é uma maneira de resistir.

Identificada como uma pessoa de gênero não binário, Muholi constrói fotografias que desmontam os padrões de masculino e feminino em busca de liberdade e fluidez. Seu trabalho valoriza a beleza comum, cotidiana e comunitária, transformada em experiência extraordinária. Sua luta por justiça e dignidade engrandece todas as pessoas.

Em 2024, Muholi visitou organizações, artistas e ativistas em São Paulo para fortalecer a luta comum por direitos. Fotos e vídeos produzidos na viagem são apresentados pela primeira vez nesta exposição.

Daniele Queiroz é curadora da área de Arte Contemporânea do Instituto Moreira Salles.
Thyago Nogueira é curador e coordenador da área de Arte Contemporânea do Instituto Moreira Salles.
Ana Paula Vitório é curadora independente, pesquisadora e professora.

Série Apenas meio quadro, 2002-2006

Only Half the Picture

“Eu retrato meio quadro e deixo ao espectador a responsabilidade para completar a outra parte da imagem.” Zanele Muholi

Em uma de suas primeiras séries fotográficas, Zanele Muholi retrata a comunidade lgbtqiapn+ da África do Sul como parte de seu trabalho no Fórum para o Empoderamento das Mulheres (few), cofundado por Muholi em 2002. As fotografias documentam pessoas que sofreram violência de gênero ou racial, como agressões e estupros “corretivos”. Com influência da fotografia documental de David Goldblatt, mentor de Muholi no início de carreira, Apenas meio quadro foi produzida poucos anos depois do fim do apartheid, em 1994, e da adoção da nova Constituição, em 1996, que fez do país o primeiro no mundo a proibir a discriminação baseada na orientação sexual. A reação conservadora a essas conquistas fez escalar a violência, denunciada nestas fotografias.

Muholi fotografa as vítimas com afeto e delicadeza. O enquadramento expõe as cicatrizes, mas protege as identidades. As fotografias apresentam pessoas que desafiam os padrões de beleza impostos pela sociedade patriarcal e heteronormativa, exibindo seios com pelos, o amor entre mulheres e outros tipos de carinho e prazer.

Série Ser, 2006

Being

A redemocratização da África do Sul, a partir de 1994, trouxe conquistas importantes para a população LGBTQIAPN+, mas os avanços não alcançaram rapidamente a realidade cotidiana. A violência de gênero, sobretudo contra mulheres lésbicas negras, cresceu no começo dos anos 2000, quando Muholi criou a série Ser.

As fotografias apresentam casais de mulheres lésbicas negras sul-africanas em espaços privados, compartilhando momentos de intimidade. Também revelam o cotidiano das townships, áreas criadas nas periferias dos centros urbanos durante o apartheid para segregar a população não branca. Ao fotografar essas mulheres e o amor que compartilham, Muholi amplia nosso repertório visual e contribui para que pessoas racializadas e LGBTQIAPN+ sejam dissociadas de situações de violência e escassez.

A série também combate a ideia de que a homoafetividade seria resultado da colonização, ao apresentar o afeto entre casais do mesmo sexo ou de gênero fluido associado a elementos étnicos tradicionais.

Série Bravas belezas, 2013-dias atuais

Brave Beauties

“Devemos lembrar a estas pessoas da diferença que fazem em nossas comunidades. Esta tem sido minha abordagem em prol de um arquivo queer.” Zanele Muholi

Os concursos de beleza feminina dominaram a tevê e a imprensa de muitos países na segunda metade do século XX. Tendo como pano de fundo o jogo político do pós-Guerra Fria, competições como Miss Mundo e Miss Universo celebravam determinada beleza branca, ao mesmo tempo que forjavam padrões inalcançáveis para boa parte da população. Nos anos 1970, a África do Sul realizava concursos separados para mulheres brancas e negras. A primeira Miss Mundo África do Sul negra foi coroada apenas em 1992, depois de resistência aguerrida.

Boa parte das pessoas retratadas em Bravas belezas participou do concurso Miss Gay RSA (República da África do Sul), iniciativa independente que permitia a inscrição de qualquer pessoa “masculina por nascimento e identificada como trans, gay ou queer dentro da Comunidade Arco-Íris”. A série inclui dezenas de retratos posados, em preto e branco, sistematizados à maneira de Faces e fases, um dos conjuntos mais conhecidos de Muholi. Exibindo o corpo inteiro, ou meio corpo, as participantes são convidadas a posar da maneira como se veem mais bonitas. A variedade de olhares, gestos e poses espelha uma comunidade ampla e diversa, unida pelo orgulho e pela bravura necessários para lutar contra estigmas e violência. Cada fotografia comemora uma vida e suas conquistas individuais, ao mesmo tempo que forma o elo de uma corrente, tanto mais poderosa quanto mais extensa e visível.

Série Miss D'vine, 2007

Miss D'vine é uma performer e ativista cultural sul-africana. Quando Muholi a conheceu, nos anos 1990, D'vine trabalhava no bar Skyline, reduto LGBTQIAPN+ de Joanesburgo. Foram anos até que Muholi criasse a intimidade necessária para fotografá-la em plena luz do dia, no topo de uma colina. Nas fotos, D'vine encarna diversos papéis, desfilando uma tanga tradicional de miçangas, um vestido de festa preto e uma saia de arco-íris, símbolo da comunidade LGBTQIAPN+. Os sapatos de salto alto vermelhos sublinham a sensualidade feminina.

Agarrada a uma grade ou sentada em frente ao mato seco, D'vine parece uma atriz de cinema. Sua personalidade exuberante e segura, mas também vulnerável, desafia a representação tradicional com a humanidade que falta a certas estrelas do gênero. Os retratos de D'vine também coroam sua beleza trans e negra, ao mesmo tempo que celebram o glamour de tantas performers que fazem da noite um palco de resistência.

Série Beulahs, 2006-2013

“Vai além de apenas ser queer. É uma forma de viver, uma existência sagrada que sobreviverá a nós.” Zanele Muholi

Na gíria LGBTQIAPN+ sul-africana, a palavra “beulah” significa “beleza”, “mulher bonita”. Na obra de Muholi, Beulahs nomeia um conjunto de retratos de pessoas gays femininas, em poses que alternam vigor e fragilidade. A cor dá naturalidade e informalidade a estes retratos, em contraste com o preto e branco documental e o rigor compositivo de outras séries do período. Nos ambientes fechados, as Beulahs transbordam vulnerabilidade; à luz do dia, a hesitação dá lugar à assertividade.

Existir com segurança ainda é batalha diária. As marcas da violência cotidiana então presentes nestes retratos, mesmo que nem sempre sejam notadas. De peito exposto, Muzi Ashley Khumalo e Bayabonga debruçam-se em uma cerca de arame farpado, símbolo da segregação brutal que rasgou a África do Sul. Stanley, colega de Muholi na plataforma online de direitos LGBTQIAPN+ Behind the Mask, exibe a cicatriz de uma facada desferida por um ex-parceiro. Num retrato tocante, Madame La Rochelle, célebre performer do bar Simply Blue, de Joanesburgo, lança um olhar perdido. Dois anos depois, La Rochelle morreria em razão de uma doença grave.

Série Miss Lésbica, 2009

Miss Lesbian

Neste conjunto de autorretratos, Muholi encena sua participação em um concurso de beleza. Nas fotografias, adereços comuns nas competições de miss, como maiôs, vestidos, saltos e coroas, são usados por Muholi em poses distorcidas ou que simulam gestos de halterofilismo, em meio a um cenário malconservado.

Muholi exibe a faixa “Miss Lésbica Negra”, em referência ao Ms Sappho, concurso de beleza realizado na África do Sul no final dos anos 1990. Finalista da edição de 1997, Muholi destaca a importância do concurso no enaltecimento da beleza negra LGBTQIAPN+ durante a redemocratização do país.

A série questiona padrões ocidentais de beleza e de gênero, que persistem nas artes visuais, na publicidade, no entretenimento e na fotografia contemporânea.

Série Salve a Leoa Negra, 2012-dias atuais

Somnyama Ngonyama

Esta série de autorretratos surgiu em 2012 como resposta a um episódio de racismo sofrido por Muholi durante uma residência artística na Itália.

Nas fotografias feitas em diversas cidades do mundo, Muholi extrai força surpreendente de objetos rotineiros, como cobertores, almofadas, fitas-crepes e cinzeiros, para destacar contextos sociais e políticos da história sul-africana e dos países por onde passa. Em Basizeni XI, Muholi veste pneus de bicicleta vazios. Símbolo da resistência negra nas townships sul-africanas, as bicicletas eram um meio de locomoção importante para as populações não brancas durante o apartheid, em razão do transporte público limitado.

Em zulu, língua materna de Muholi, “Ngonyama” significa “leão/leoa”. A palavra também nomeia o clã de sua mãe Bester, que trabalhou durante toda a vida como empregada doméstica para famílias brancas sul-africanas. No título da série, Muholi saúda sua mãe e sua ancestralidade. Nas fotografias intituladas Bester, itens domésticos como esponjas de aço e pregadores de roupa também homenageiam a mãe de Muholi e toda a sociedade negra e trabalhadora sul-africana.

A presença do zulu em muitos títulos reforça a luta contra a discriminação linguística, que valoriza o inglês em detrimento das línguas originárias sul-africanas. O negrume da pele, enfatizado pelo tratamento fotográfico, inventa uma beleza exuberante, muitas vezes associada a um olhar frontal, devolvido ao espectador.

Documentar suas viagens pelo mundo e suas jornadas interiores, seus altos e baixos, é uma forma de construir sua própria história, reverenciar suas origens e curar-se.

Série Faces e fases , 2006-dias atuais

Faces and Phases

A série mais conhecida de Muholi hoje soma centenas de fotografias em preto e branco. O projeto reúne retratos de pessoas negras lésbicas, não binárias e transgêneros masculinos, construindo um recorte específico dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+.

As faces são a imagem que cada participante deseja produzir de si, muitas vezes em várias fotografias tiradas ao longo de anos; as fases registram o transcorrer do tempo, além dos processos de transição e afirmação de gênero. Muholi iniciou a série para construir um arquivo da comunidade LGBTQIAPN+ sul-africana, registrando também suas próprias faces e fases.

As fotografias são feitas em espaços variados, com a luz disponível e fundos que alternam muros, lonas, cobertores e tapetes. A presença do grafismo expande a tradição de fotógrafos de estúdio, como Malick Sidibé, Felicia Abban e Seydou Keïta. Cada pessoa é fotografada da maneira que deseja, garantindo que se sinta bonita e empoderada. Estes rostos contam histórias e se unem na luta por representação e visibilidade. A diversidade do grupo é amplificada pela apresentação em grid, ao passo que os espaços vazios indicam a entrada constante de novos retratos, mas também a partida de alguns.

Recentemente, a série passou a incluir participantes do Brasil, do Canadá e da Inglaterra.