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Contraste

Espelho interior: fotolivros e o autorretrato contemporâneo

IMS Paulista

Texto da curadoria

O autorretrato é um paradoxo visual: aquele que olha é simultaneamente o olhado, pois nesse gênero o fotógrafo não é apenas sujeito, mas também objeto. Hoje, a prática adquire novas camadas de significado e complexidade diante de um mundo saturado por selfies e pela constante autoexposição nas redes sociais.

Esta exposição reúne 12 fotolivros contemporâneos que investigam as múltiplas dimensões da autorrepresentação fotográfica, estabelecendo diálogos com a obra de Zanele Muholi, particularmente com sua célebre série Somnyama Ngonyama. Suas fotografias exemplificam o poder do autorretrato como ferramenta de autodescoberta, expressão pessoal e ativismo visual.

Os trabalhos reunidos aqui não são meros exercícios formais ou narcisísticos, mas explorações profundas sobre identidade, corpo, memória e transformação. Neles, o ato de se autorretratar torna-se um gesto simultaneamente político e íntimo, em que cada artista enfrenta o desafio de se ver e de se mostrar através de suas próprias lentes – tanto literal quanto metaforicamente.

A junção entre autorretrato e ativismo se vê logo no trabalho da artista Nona Faustine, que estabelece um poderoso diálogo entre passado e presente, apagamento e visibilidade, ao inserir seu corpo nu em locais historicamente ligados à escravidão em Nova York. 

Obras como as de Val Souza e Carla Williams também articulam narrativas visuais que entrelaçam o pessoal e o histórico, estabelecendo diálogos entre autoimagem, representações culturais e a hiperssexualização de mulheres negras. Souza cria um diálogo visual entre seus autorretratos e uma pintura do início do século XX, enquanto Williams trata de temas como intimidade, vulnerabilidade e a vivência da mulher negra nos Estados Unidos. A figura de Vênus é um elemento em comum no trabalho de ambas, sendo o nome de uma das poucas fotografias intituladas da norte-americana e um contraponto para o trabalho da brasileira.

O caráter performático do autorretrato é explorado por artistas como Samuel Fosso e Lyle Ashton Harris. Em 666 polaroides de grande formato que constroem um livro quase enciclopédico, Fosso explora com suas expressões faciais o máximo de emoções que seu rosto é capaz de manifestar. Harris lança mão de polaroides para criar autorretratos com múltiplas camadas e exposições, performando diferentes personagens masculinos e femininos, desafiando concepções de masculinidade e raça como artista negro.

Com outra abordagem, Marvel Harris documenta sua jornada íntima de autoaceitação e transformação através do registro sistemático de seu corpo em transição por meio de fotografias em preto e branco realizadas durante cinco anos. De modo similar, o brasileiro Gabz 404 apresenta uma abordagem fragmentada e não linear que reflete sobre processos de transição de gênero e transformação para além de categorias fixas de identidade. 

Trabalhos como os de Jane Batista e Lua Cavalcante, duas artistas brasileiras, revelam uma dimensão também introspectiva e intimista, porém igualmente experimental. Nessas obras, a câmera, em conjunto com outros materiais (orgânicos ou não), funciona como instrumento de autoinvestigação e liberação do silenciamento que recai sobre seus corpos.

A passagem do tempo e o envelhecimento são temas centrais de Rosalind Fox Solomon, que reúne autorretratos realizados ao longo de cinco décadas, explorando a evolução de seu corpo e mente pela ação do tempo. Já Yurie Nagashima e Mika Ninagawa oferecem diferentes perspectivas sobre o ato feminino de se autorretratar no contexto japonês. Para Nagashima, “o autorretrato como técnica implica mais do que apenas a subversão da relação de poder entre homens e mulheres”, desafiando de maneira sarcástica como o olhar masculino opera sobre o corpo feminino. 

O que une essas obras tão diversas é a convicção de que, ao olharmos para nós mesmos através da fotografia, não encontramos uma imagem fixa ou definitiva, mas um fluxo constante de possibilidades. Como espelhos internos, esses trabalhos não apenas refletem, mas transformam e reimaginam os corpos e as identidades que retratam, abrindo nosso olhar, inclusive, para a possibilidade da autoficção. Em um mundo obcecado com a superfície e a imagem instantânea, esses fotolivros nos convidam a um olhar mais profundo, atento às complexidades, contradições e belezas do ato revolucionário de se ver e se mostrar em toda sua vulnerabilidade e potência.

Equipe da Biblioteca de Fotografia