Gordon Parks - A América sou eu
IMS Paulista
Textos da exposição
Gordon Parks: a consciência de ser negro nas Américas
Gordon Parks é um dos mais relevantes fotógrafos do século XX, assim como um cineasta fundamental, que abriu caminhos a partir da sua percepção de pessoa negra, testemunha do racismo, da desigualdade e da injustiça social, da opressão e da repressão, mas também das lutas pela emancipação do povo negro norte-americano e pela conquista dos direitos cívis, que assumiu e protagonizou.
Esta exposição resulta de uma parceria estabelecida entre o Instituto Moreira Salles e a Fundação Gordon Parks (EUA). Ela sublinha os objetivos do IMS de apresentar no Brasil nomes fundamentais da história da fotografia mundial, em diálogo com questões e temas que possam contribuir para reflexões e interpretações específicas no contexto brasileiro. Ambas as instituições estão conscientes de que este projeto reafirma a contribuição dos seus acervos para uma reinterpretação da história de cada um dos seus países.
O Instituto Moreira Salles e a Fundação Gordon Parks manifestam a sua gratidão a Janaina Damaceno, curadora do projeto, e a Iliriana Fontoura Rodrigues, curadora assistente, pelo entusiasmo, pela pesquisa realizada, pelas ideias e por todo trabalho e dedicação extraordinária. Destacamos igualmente a participação ativa de Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do IMS, ao qual expressamos o nosso agradecimento. Uma palavra de reconhecimento é devida a Pamela de Oliveira Pereira, autora da cronologia, e a Maria Luiza Menezes, assistente de curadoria. A gratidão das duas instituições é extensível ainda a todas as pessoas que, em cada uma delas, contribuíram para um projeto que originará uma recepção mais ampla da obra de Gordon Parks, assim como novas interpretações do seu trabalho, no contexto do Brasil e dos EUA, assim como na dimensão de um contexto mundial.
Diretoria do Instituto Moreira Salles
Nasci inquieto. Gordon Parks.
Quando Gordon Parks (1912–2006) fotografou Joanne e Shirley, lindas com suas melhores roupas de domingo, sob um letreiro luminoso que dizia “entrada para pessoas de cor”, na cidade segregada de Mobile, Alabama, ele criou uma das imagens mais emblemáticas do século XX. O letreiro e o enquadramento da foto simbolizam a estrutura racista e segregacionista dos Estados Unidos, refletida nas formas arquitetônicas e no design que sustentavam a segregação racial (1877-1965). Contudo, essa imagem também revela como as pessoas negras desafiaram um sistema que buscava sua aniquilação. Ao reivindicarem seu direito a existir plenamente, Joanne e Shirley, orgulhosas em suas roupas de domingo, exemplificam o que Tina Campt (2017) chama de prática de recusa à precariedade da vida. Para compreender o poderoso arquivo visual criado por Parks, é necessário mais do que olhar para as suas obras. É necessário criar sintonia, se deixar afetar, ouvir suas imagens, que foram produzidas num momento em que a maior parte da representação sobre pessoas negras era desumanizante e entender como ele também lutou contra uma vida precária ao produzir imagens respeitáveis de pessoas negras.
O título desta exposição é inspirado em um texto escrito por Parks, publicado em 1968 na revista Life. Ele havia fotografado o cotidiano da Família Fontenelle, uma família negra vivendo em extrema pobreza no Harlem, e escreveu como se fosse um dos seus membros: "Eu, também, sou a América. A América sou eu. Ela me concedeu a única vida que tenho – então devo compartilhá-la em sua luta. Olhe para mim. Escute-me. Tente entender a minha luta contra o seu racismo. Ainda há uma chance para que consigamos viver em paz sob esses céus tão intempestivos." (Gordon Parks, “A Harlem Family”, Life, 8 de março de 1968).
É uma honra apresentar a maior exposição de Gordon Parks (1912–2006) já realizada na América Latina. Criador de algumas das imagens mais icônicas do século XX, como American Gothic, Parks foi um multiartista talentoso, que via na fotografia uma poderosa arma para combater injustiças sociais, como o racismo e a segregação racial. Seu trabalho ressoa ainda hoje, quando pensamos sobre os limites da democracia e da cidadania no mundo contemporâneo.
Sua carreira como fotógrafo teve início em 1938, na imprensa negra norte-americana. Ele passou por importantes instituições, como o departamento de fotografia da Farm Security Administration, e publicações antes de conquistar grande notoriedade, ao tornar-se o primeiro fotógrafo negro da renomada revista Life, onde trabalhou por mais de duas décadas.
A exposição Gordon Parks: a América sou eu oferece uma visão panorâmica e única da obra do fotógrafo, destacando as principais séries que ele produziu entre as décadas de 1940 e 1970, com ênfase em seu olhar sobre a vida da população negra nos Estados Unidos. Dessa forma, desejamos que você possa apreciar tanto a amplitude do trabalho de Parks quanto compreender o contexto e a lógica por trás da sua produção fotográfica seriada.
No oitavo andar, estão expostas imagens realizadas entre as décadas de 1940 e 1950, enquanto, no sétimo, encontra-se sua produção entre 1961 e 1970, incluindo a icônica fotografia Um grande dia para o hip-hop, de 1998.
Além de sua atuação na fotografia, Gordon Parks desempenhou papel fundamental na história do cinema, ao se tornar a primeira pessoa negra a dirigir um filme em um grande estúdio de Hollywood (Com o terror na alma, 1969). Ele também dirigiu Shaft (1971), o principal título do gênero então conhecido como blaxploitation. O Brasil teve importância significativa para sua produção audiovisual, sendo o país onde Parks realizou seu primeiro filme, Flavio (1964). Esse curta-metragem surgiu a partir de uma reportagem polêmica sobre a família Da Silva, feita por ele como enviado da revista Life ao Brasil, em 1961. A reportagem provocou indignação na imprensa nacional ao expor internacionalmente a pobreza da família que vivia na favela da Catacumba, no Rio de Janeiro, e gerou resposta da revista O Cruzeiro, resultando no embate entre as duas publicações que ficou conhecido como “Caso Flávio”.
Exceto as imagens de Vantoen Pereira Jr. sobre a passagem de Parks no Brasil em 2000, todas as outras fotografias são uma cortesia da Fundação Gordon Parks (The Gordon Parks Foundation), que detém o copyright das mesmas.
Mais do que ver, te convidamos a escutar as imagens de Parks e se deixar afetar pelas suas frequências.
Janaina Damaceno, curadora
Iliriana Fontoura Rodrigues, curadora assistente
Washington, D.C.
Em 1942, com o aporte de uma bolsa de estudos para artistas negros, Parks pôde estagiar durante um ano no departamento de fotografia da Farm Security Administration (FSA), agência do governo americano criada para ajudar pequenos agricultores. O departamento fotográfico documentava as condições de vida dos americanos durante os anos da Depressão, tanto em áreas rurais quanto urbanas. Ele foi um marco na história da fotografia documental. Passaram por lá fotógrafos importantes como Walker Evans, Dorothea Lange, Arthur Rothstein, Jack Delano, Marion Post Wolcott e Carl Mydans.
Quando Parks chegou em Washington, D.C., Roy Stryker, seu chefe, pediu para que ele guardasse seu equipamento e fosse vivenciar a cidade. Depois de um dia sendo expulso e impedido de entrar em restaurantes, cinemas e de fazer compras em lojas de departamento, Parks entendeu que a capital americana era, na verdade, “uma cidade do Sul”. Stryker lhe disse que era necessário traduzir isso visualmente e pediu para que ele conversasse com Ella Watson, funcionária da limpeza, para entender como ela vivenciava o racismo, e o encontro entre eles se tornou uma das fotos mais importantes da história americana.
Ao ver a foto, Stryker perguntou a Parks se ele queria que todos fossem demitidos e não a publicou. American Gothic só foi publicada seis anos depois, em 1948, na Ebony Magazine, uma importante revista da imprensa negra americana. Na fotografia, Ella Watson segura uma vassoura de um lado, e do outro há um esfregão, com a bandeira americana atrás dela, expressando a cidadania de segunda classe vivenciada pela comunidade negra norte-americana.
Parks seguiu registrando o cotidiano de Ella por mais duas semanas, seguindo à risca uma das orientações de Stryker, que dizia não acreditar que uma imagem contaria toda uma história e, por isso, estimulava a criação de séries fotográficas mais abrangentes. O que acabaria sendo também uma marca do trabalho de Parks, mais centrado na construção de narrativas sequenciais do que em imagens únicas.
Nova York
O Harlem foi marcante na história pessoal e profissional de Parks. Ele conheceu o bairro pela primeira vez em 1933, quando era músico da Larry Funk's Orchestra, que se dissolveu assim que chegou em Nova York. Com pouco dinheiro, ele se mudou para o Harlem, destino de milhares de pessoas que fugiam da segregação racial do Sul.
Quando retorna ao Harlem uma década depois, como fotógrafo da Office of War Information (OWI) – departamento de propaganda de guerra norte-americano –, Parks começa a documentar a vida efervescente do bairro.
Neste espaço, você vai conhecer o Harlem de Gordon Parks através de imagens que ele fez entre 1943 e 1948 de cenas cotidianas do bairro, das séries Líder de uma gangue no Harlem (1948) e O homem invisível (1952), uma parceria entre ele e o escritor Ralph Ellison, e de Shaft (1971), o icônico filme da blaxploitation que revolucionou a história do cinema americano. Sim, Parks foi o diretor de Shaft!
Nova York
Filme mais importante de sua carreira como cineasta e principal filme do gênero conhecido como blaxploitation, Shaft (1971) foi dirigido por Gordon Parks. No filme, ambientado no Harlem, o detetive negro John Shaft (Richard Roundtree) tenta recuperar a filha de um chefão das mãos da máfia. Shaft é durão, bonito e não leva desaforo para casa. Ao mesmo tempo, é bastante violento, inclusive com algumas de suas namoradas, o que fez o filme receber diversas críticas. Entre elas a de reforçar estereótipos em relação à hipersexualidade e à violência de homens negros.
Shaft foi um marco também pela música de Isaac Hayes, que recebeu o Oscar de Melhor Música Original pelo filme. Um sucesso em todo o mundo, o filme influenciou também a juventude negra brasileira e, no Rio de Janeiro, foram criados por Filó Filho e amigos as Noites do Shaft, bailes negros com temática soul que movimentavam multidões, como podemos ver em filmes como Black Rio! Black Power! (2023), de Emilio Domingues.
O blaxploitation é um cinema que responde ao seu tempo, um gênero composto de filmes que tiram os negros dos papéis coadjuvantes serviçais e idealizam a figura do herói. Homens (Richard Roundtree, Melvin Van Peebles) e mulheres (Tamara Dobson, Pam Grier) gostosos, desejados, atrevidos, que flertam, mergulham ou trabalham com a lei e a marginalidade. Personagens reflexo de uma romantização da inversão do status quo: os policiais, ponta final do iceberg de opressão, são os mais espezinhados no blaxploitation […] É um cinema de vingança, de humor e de raiva. Descaradamente aberto e honesto em suas fraquezas. Cinema imperfeito que pulsa. Cinema que joga com crueldade e ironia a discriminação na cara da sociedade norte-americana. (Heitor Augusto, “Blaxploitation: o gênero que obrigou o mundo a notar os negros”, 2011.)
Harlem, Nova York
Mais do que uma parceria pontual, esta série revela a amizade entre Gordon Parks e Ralph Ellison. Segundo projeto da dupla (o primeiro nunca foi publicado), ele foi realizado como uma matéria de divulgação na Life do recém-lançado livro de Ellison, Homem invisível, um dos mais importantes da história da literatura americana. Na novela, um jovem negro anônimo do “Sul profundo" vai para Nova York após ser expulso da universidade. Quando percebe que é invisível para a maioria das pessoas, decide morar no porão abandonado de um prédio habitado por pessoas brancas. Lá, escondido de todos, ele não precisa pagar a conta de suas 1.369 lâmpadas, e seu lar se torna o lugar mais iluminado de toda a cidade, um lugar onde ele pode se refugiar. Ao mesmo tempo que trata dos efeitos sociais e psicológicos do racismo, Homem invisível fala sobre a possibilidade de sonhar destinos factíveis para cada um de nós.
Em sua fotografia, Parks interpreta passagens emblemáticas do livro, mas também o extrapola quando, por exemplo, fotografa o protagonista da história saindo do bueiro e observando a cidade.
Na parte externa do refúgio de Ellison e Gordon, vemos imagens que ambientam o ensaio no Harlem e representam o protagonista com sua maleta na estação de trem e um dos seus pesadelos persecutórios.
Fort Scott, Kansas
Em 1950, a revista Life designou Parks para uma matéria sobre segregação escolar no estado do Kansas. Nascido em Fort Scott, uma cidade no interior desse estado, Parks decidiu falar sobre o impacto da educação segregada para a sua geração e, para isso, resolveu ir atrás dos seus colegas da turma de formandos de 1927 da Escola Plaza.
Naquele ano, ele e seus 11 colegas concluíram o equivalente ao 9o ano. A reportagem nunca foi publicada, mas tornou-se uma das mais belas séries fotográficas de Gordon Parks. A maioria das imagens desta série veio a público em 2015, através da pesquisa de Karen Haas para uma exposição do Museu de Belas-Artes de Boston em parceria com a Fundação Gordon Parks.
Ao voltar para Fort Scott, Parks descobriu que dez de seus colegas haviam migrado, e apenas uma delas permanecia na cidade, mas com desejo de migrar. Eles eram refugiados da política segregacionista do Sul em cidades como Chicago e Detroit.
Migrar, embora fosse a melhor solução para se livrar das mazelas da segregação, não os livrava de outras situações oriundas do racismo.
Chicago, Illinois
Para escapar aos efeitos nefastos da segregação racial, mais de seis milhões de pessoas negras saíram do Sul rural e se refugiaram em cidades do Norte, Oeste e Meio-Oeste dos Estados Unidos, onde havia mais oportunidades de vida e menos violência. Esse período foi conhecido como Grande Migração (1910-1970). Antes do Harlem, os lados sul e oeste de Chicago foram um centro importante de destino desses imigrantes. Não é à toa que lá se forma a Escola de Chicago, o principal centro de estudos urbanos do país, que pesquisava, por exemplo, a adaptação dos migrantes negros rurais ao meio urbano.
Chicago é uma cidade importante na formação artística de Parks. Durante os anos em que trabalhou na companhia de trem Northern Railroad como carregador de malas, teve a oportunidade de conhecer a cidade e visitar várias vezes o Art Institute of Chicago, um dos museus mais importantes do mundo.
Ele viveu em Chicago entre 1941 e 1942 e fez amizades com artistas negros, como Charles White, realizou exposições e manteve um estúdio fotográfico no Southside Community Art Center. Com as fotografias que realizou sobre o lado sul de Chicago, ganhou a bolsa de estudos que o levou à Farm Security Administration, o que mudou a sua vida. Quando ele voltou para a cidade 13 anos depois dessa experiência, ele sabia bem qual era o significado de fotografar a Igreja Batista Missionária.
Fort Scott, Kansas
Em 1969, Gordon Parks dirigiu The Learning Tree (traduzido para o português como Com o terror na alma), seu primeiro longa-metragem. Baseado na sua novela semiautobiográfica de mesmo nome publicada em 1963, o filme narra a história de Newt Winger, um adolescente negro de 14 anos que vive em Cherokee Flats, no Kansas segregado durante as décadas de 1920 e 1930.
A trilha sonora de The Learning Tree foi composta por Parks, incluindo a abertura que você está ouvindo! Aqui, podemos ver o talento único de Gordon como escritor, fotógrafo, cineasta e músico.
O título The Learning Tree (A árvore da sabedoria) se refere a um diálogo que Parks teve com a sua mãe, que lhe disse que era necessário ver a vida e a cidade de Fort Scott como uma árvore que tem bons e maus frutos, e que mesmo os frutos ruins iriam lhe ensinar alguma coisa no futuro.
“É possível aprender aqui sobre as pessoas e as coisas tanto quanto em qualquer lugar. A cidade de Cherokee Flats é como uma árvore frutífera: algumas pessoas são boas, e outras são ruins, tal como os frutos de uma árvore... Se você aprende como se aproveitar da bondade e da maldade que seus habitantes fazem uns aos outros, você aprenderá um bocado sobre a vida. Algum dia, esse aprendizado te tornará um homem melhor... Não importa onde vá ou faça morada, pense em Cherokee Flats até o dia de sua morte – que ela seja sua árvore do conhecimento.”
Gordon Parks, The Learning Tree, 1963. (Tradução de Heitor Augusto)
O movimento negro norte-americano, assim como o brasileiro, é composto por uma multiplicidade de organizações que pensam o ativismo negro de maneiras diferentes. Por isso, generalizações acerca desse movimento podem ser bastante simplistas e não expressar a complexidade do agenciamento negro na política. Nesta sala, podemos ver expressões do ativismo negro norte-americano, simbolizados em quatro grandes lideranças retratadas por Gordon Parks: Martin Luther King Jr. (1929-1968), Malcolm X (1925-1965), Stokely Carmichael (1941-1998) e Eldridge Cleaver (1935-1998).
Washington, D.C.
Com a presença de mais de 250 mil pessoas, a Marcha por Empregos e Liberdade, mais conhecida como Marcha para Washington, foi um dos atos políticos mais importantes da história americana. Ele foi realizado em frente ao Memorial Lincoln – monumento em homenagem ao presidente que, em 1863, assinou a Proclamação da Emancipação (o correspondente a nossa Lei de Abolição). Cem anos após a emancipação, o movimento negro norte-americano denunciava que sua comunidade ainda vivia em péssimas condições e sob o domínio da segregação e do racismo. O ato acabou influenciando a assinatura da Lei dos Direitos Civis (1964), que pôs fim à segregação racial, proibiu a discriminação baseada em cor, raça, religião ou nacionalidade, promoveu a igualdade racial e o direito ao voto. Foi nesse ato que Martin Luther King Jr. proferiu o discurso “I have a dream'' [Eu tenho um sonho].
As fotos de Parks foram publicadas junto com a de outros fotógrafos na reportagem especial que a revista Life preparou sobre o evento.
Para King, a luta pelos Direitos Civis deveria ter a não violência como princípio, para que se tornasse evidente quem eram os racistas na sociedade americana. Além disso, ele acreditava na integração racial, numa sociedade de direitos iguais em que brancos e negros vivessem em paz.
Parks foi escalado pela Life para fotografar e escrever sobre a Nação do Islã, uma organização negra muçulmana que surgiu em 1930. Não foi uma tarefa fácil. Elijah Muhammad, seu líder, já havia negado o contato a diversos jornalistas brancos. Quando soube que Parks trabalhava para a Life, perguntou a ele: "Por que um jovem brilhante como você trabalha para os demônios brancos?". No final, Parks acabou recebendo o aval da liderança, realizou uma das suas reportagens mais marcantes e desenvolveu uma relação tão profunda com Malcom X que se tornou seu compadre.
Em Muçulmanos negros, Parks nos apresenta um amplo aspecto da atuação da Nação do Islã e da trajetória de Malcom X. Convertido enquanto ainda se encontrava preso, X não acreditava nem na política de não violência de Luther King nem na ideia de integração. Para ele, a autodeterminação do povo preto se daria através de uma revolução em torno da terra, já que era necessário construir uma nação preta.
Em seu discurso "Message to the Grass Roots" [Mensagem para as bases] (1963), Malcolm X mostra seus pontos de discórdia com a Marcha para Washington e com Luther King, a quem compara com um Tio Tom, conformado e integracionista.
Foi também a pedido da Life que Parks documentou lideranças dos Panteras Negras, como Stokely Carmichael, em 1966 e 1967, e Eldridge e Kathleen Cleaver, em 1970.
Stokely Carmichael foi líder do Comitê de Coordenação Estudantil Não Violenta (Student Nonviolent Coordinating Committee), quando começou a usar o slogan que logo se tornaria um movimento: Black Power. Aos poucos, ele passa a acreditar que a ideia de não violência era uma forma de obstruir os esforços da luta antirracista, pois a violência real vinha da sociedade branca e racista. Ele passa a defender o uso da violência e condena a ideia de integração negra à sociedade americana. Para ele, o foco seria derrubar o sistema supremacista branco e, assim, acabou fundando, junto com outros jovens, o Partido dos Panteras Negras, com quem rompeu em 1969, e mudou seu nome de Stokely Carmichael para Kwame Turè. A essa altura, Kwame entendia que a luta negra era transnacional e defendia o pan-africanismo. Anos depois, em 1986, visitou o Brasil, a convite do IPCN (Instituto de Pesquisas da Cultura Negra) e conheceu a região onde se localizava o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, em Alagoas.
O rompimento de Stokely Carmichael com os Panteras Negras pode ser acompanhado através das missivas trocadas entre Carmichael e Eldridge Cleaver, ministro da informação dos Panteras Negras. Embora tivessem ideias semelhantes, uma das principais divergências entre eles era que Stokely não apoiava qualquer tipo de conexão entre organizações brancas e negras, enquanto os Panteras Negras viam isso como estratégico na luta antirracista, anticolonial e anti-imperialista global.
Cleaver aponta, ainda, que o movimento Black Power fora cooptado pela agenda capitalista, e que Carmichael era ressentido porque os Panteras Negras tinham uma orientação marxista-leninista internacionalista que estava além da luta baseada apenas na cor da pele ou no nacionalismo negro.
Nova York
Em 1967, Parks recebeu a tarefa de realizar uma reportagem sobre os motivos dos protestos da juventude negra, em especial dos Panteras Negras. Seus editores não entendiam por que eles eram tão radicais, pois a Lei dos Direitos Civis já havia sido assinada.
Parks decidiu que a melhor maneira de mostrar os motivos da revolta negra era publicizar as condições de vida da população negra na maior cidade do país. E, assim, voltou ao Harlem e documentou a vida da Família Fontenelle, que vivia em extrema pobreza, assim como diversas outras famílias negras do bairro e do país.
O movimento negro gritava porque a comunidade negra passava fome e frio.
Em 1961, Gordon Parks veio ao Brasil a pedido da revista Life, para documentar a vida nas favelas cariocas. Ele acompanhou durante algumas semanas o cotidiano da família Da Silva, que migrou do Nordeste para o Rio de Janeiro e, em especial, de seu filho Flávio, que sofria de bronquite crônica. Devido à reportagem, a família recebeu doações dos leitores da revista e comprou uma casa no subúrbio, e Flávio foi levado para os Estados Unidos para tratar de sua doença. O caso teve grande repercussão na imprensa brasileira, e a revista O Cruzeiro enviou o fotógrafo Henri Ballot para fazer uma reportagem sobre a pobreza no Harlem.
Nossa imprensa acusou Parks de não ser solidário com a sua comunidade por retratar a miséria através do rosto de uma criança branca. Houve, inclusive, quem publicasse que iria trazer uma criança negra do Harlem para viver como branco no Brasil. Mostrar nossa pobreza, através da história de um menino branco (para nós, mas latino para eles) foi visto como um ataque.
Além da reportagem, Parks realizou também seu primeiro filme Flávio (1964). Narrado em primeira pessoa, com a voz de um menino, o curta faz parte da história do cinema da diáspora negra. É um dos primeiros filmes dirigidos por um homem negro em solo brasileiro.
Na exposição, vemos imagens inéditas de Parks no Brasil: crianças jogando bola na lagoa Rodrigo de Freitas e um culto evangélico. Para quem documentou diversas vezes a Igreja Negra americana, foi uma oportunidade de registrar um templo frequentado majoritariamente por pessoas negras.
Em 2018, o Instituto Moreira Salles realizou a exposição O caso Flávio.
Miami, Flórida
Londres, Inglaterra
Como jornalista, Parks teve a possibilidade de documentar a história de anônimos, mas também de estrelas como Muhammad Ali (1942-2016) que lutaram contra a supremacia branca, a desigualdade e a pobreza. Ali não foi apenas um dos maiores atletas da história, foi também um ativista antirracista corajoso, que perdeu tudo, inclusive o título de campeão mundial, após se recusar a prestar o serviço militar na Guerra do Vietnã.
Convertido ao islamismo e integrante da Nação do Islã, Ali tinha 25 anos e era contra a guerra por achá-la injusta e um modo de expansão do imperialismo americano contra povos não brancos. Além disso, expunha a ironia que era enviar jovens negros para lutar pela democracia no Vietnã, sendo que eles não a conheciam em sua própria casa.
Nesta série, testemunhamos o encontro entre duas lendas, que nos ensinam que não importa o que fazemos da vida, sempre há lugar para lutar por justiça.
O muçulmano negro Ali dizia: “Eu sou a América. Sou a parte que você não vai reconhecer. Mas se acostume comigo. Negro, confiante, convencido; meu nome, não o seu; minha religião, não a sua; [tenho] meus objetivos, os meus próprios objetivos; se acostume comigo.”
Harlem, Nova York
A fotografia de Gordon Parks para a capa da XXL Magazine, uma das mais importantes revistas de hip-hop do mundo, é icônica! Ela é uma homenagem à fotografia Um grande dia no Harlem (1958), de Art Kane, que reúne 57 estrelas do jazz em frente ao prédio da rua 126, número 17, no lado leste do Harlem.
Na imagem de Parks, podemos ver nomes fundamentais do hip-hop, como Grandmaster Flash, Slick Rick, The Roots e Da Brat entre os 117 retratados.
A foto é um elo temporal entre o jazz e o hip-hop, duas expressões máximas da cultura negra norte-americana. Talvez Parks se enxergasse nesses jovens. Sessenta e cinco anos antes, ele estava chegando pela primeira vez no Harlem tentando alcançar o sonho de ser músico. Como muitos jovens do rap, ele teve que transgredir a lei para poder sobreviver, mas ele estava ali, vivo, como eles, 65 anos depois.
Mobile e Shady Grove, Alabama
Nesta série, Parks acompanha o cotidiano das famílias Causey e Thornton, no interior do Alabama. Fotografar no estado era correr risco real de morte. Parks inclusive foi perseguido e ameaçado por grupos de supremacistas brancos. Ao final de seu trabalho, teve que fugir de Mobile, ao descobrir que havia uma emboscada preparada contra ele e seu assistente. Compreender estas imagens, que mesclam a beleza (do cotidiano, da relação familiar, do amor e do afeto) com o horror da segregação, exige uma grande sensibilidade para que não se romantize o horror e para que não se acredite que a segregação foi algo menor. Enquanto Parks produzia essas imagens, pessoas eram linchadas, crianças negras eram apedrejadas ao irem para escolas não segregadas e casamentos inter-raciais eram proibidos em boa parte do país.
A profusão de placas separando os equipamentos e as entradas para brancos e negros mostra que havia uma logística, uma arquitetura e um design pensados para a segregação. Elas também são marcos visuais que representam a estrutura racista como plano de fundo para a navegação social de indivíduos negros e brancos.
Nesse período, o fotojornalismo ainda era marcado pela produção de imagens em preto e branco. Ao produzir fotografias em cor do cotidiano de famílias negras, Gordon tentava aproximar os leitores da Life à vida real dessas pessoas de carne e osso, mostrando que, na banalidade colorida do cotidiano, todos, pretos e brancos, eram irremediavelmente humanos. E isso era uma grande afronta ao sistema de segregação racial.
Os Thornton e os Causey eram trabalhadores que sonhavam com a possibilidade de ascensão social. O impacto da publicação de suas vidas na Life foi devastador. Alguns perderam o emprego, tiveram equipamentos tomados, foram hostilizados pela população branca por afirmar que gostariam de viver numa sociedade integrada, tiveram que mudar de cidade. Sonhar a justiça teve um preço bastante alto para eles.
