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10 anos da Bolsa ZUM/IMS

Paço Imperial (Rio de Janeiro/RJ)

Artistas

Castiel Vitorino Brasileiro (Vitória, ES, 1996)

A anatomia da água (livro 1 da série Corpoflor). São Paulo: Edição do autor, 2022.

 

A anatomia da água (livro 1 da série Corpoflor), 2022
Lambes impressos em 2023 em pigmento mineral sobre papel 100% celulose.

Sob a aparência de um manual de anatomia do século XIX, a artista Castiel Vitorino Brasileiro elabora um manifesto libertário e biográfico de sua própria história de transmutação. Com textos, fotos e desenhos, a obra alinhava teorias evolutivas, viagens interplanetárias, espiritualidade africana e autoanálise para esmiuçar o desejo de viver um hibridismo radical: a possibilidade de misturar-se a vidas de outros reinos e mundos. O livro é um desdobramento da série Corpoflor, performance fotográfica iniciada em 2016 a fim de lidar com seus “momentos de medo, dor, coragem, raiva, tesão”, afirma a artista. Em inúmeros autorretratos, Vitorino experimenta com gestos, pinturas, símbolos, cores e outros elementos, num processo de descoberta e cura. Em A anatomia da água, a série Corpoflor se desdobra em parceria com a artista maranhense Gê Viana, entre outros amigos e colaboradores. “Sou fruto do buraco negro, por isso minha pele é escura, porque no negrume dos mares abissais, não sou negra, sou o mar, líquida”, declara, aproximando sua ancestralidade do vocábulo banto “kalunga” – o grande rio mitológico que conecta o mundo dos vivos às forças dos antepassados. Ao eleger a água como metáfora do corpo, Vitorino também se liberta de uma forma fixa e anatômica, subvertendo o escopo do livro. “No espere cambiar de forma para ser feliz con aquela que já tienes en tu memória”, afirma. Os textos combinam ideias e idiomas numa mesma frase, ampliando o alcance da transmutação física. Transmutar é libertar-se do corpo, do tempo, do espaço e da língua, dos domínios que oprimem. É também driblar a morte em busca da vida plena ou de seu fim.
(Thyago Nogueira) Bolsa ZUM/IMS 2021

Depoimento

 

Transcrição do depoimento

Olá sou Castiel Vitorino Brasileiro, sou artista plástica, psicóloga, mestra em psicologia e também uma pessoa destinada ao exercício de medicinas de origem africana banto, que acontecem no Brasil a partir de escolas medicinais e religiosas, como umbanda, candomblé, omolokô... Também faço parte de uma comunidade chamada Morro da Fonte Grande, onde eu fui iniciada em várias e diversas importantes manifestações culturais, pilares ontológicos dessa cultura banto afro-brasileira advinda da região da Centro África, especialmente o que hoje é delimitado como Angola. Iniciei a pesquisa que oferece esse trabalho, com o qual hoje vocês têm contato, em 2016. Essa pesquisa se chama Corpoflor e trata-se de uma pesquisa sobre metamorfose, mudança, transmutação, transfiguração ao longo do tempo: então, uma pesquisa fotográfica onde eu interfiro no meu corpo a partir de diversas técnicas, como pintura, argila, também crio próteses com penas de animais, com roupas também, enfim, são inúmeras as possibilidades que eu tenho criado em meu corpo e também com outras pessoas. É disso que trata Corpoflor, e é uma obra que eu tenho feito desde 2016: são fotografias que sempre diferem da fotografia anterior, e, ao longo desses seis ou sete anos, você consegue ver e sentir uma mudança: ao mesmo tempo uma mudança na transfiguração, mas também uma consistência, uma conexão com todas essas fases, essas imagens. Então, em 2021 eu fui contemplada pelo edital Bolsa ZUM, a qual estamos comemorando 10 anos nesta ocasião, e para esse projeto que eu me propus a realizar na Bolsa ZUM de fotografia, o que eu decidi é que eu gostaria de fazer Corpoflor em outras pessoas além de mim, entender essa dimensão coletiva possível de ser criada a partir do corpo flor, ou seja: cenas de transfigurações coletivas, comunitárias, como se fosse uma alcateia, um cardume e mesmo porque na minha obra geralmente eu estou sozinha, então vi essa possibilidade e criei um projeto para viajar. Eu sou uma mulher transexual negra, e eu tenho uma memória ancestral em relação ao tráfego, à mudança, ao deslocamento, então, muitos dos meus ancestrais, e meus contemporâneos também, viajaram, foram para outros lugares por conta de uma de uma fuga. Eu não queria viajar porque estava fugindo de algo: eu queria viajar para encontrar alguma coisa para amar, para ser feliz; então eu me propus a passar um mês no Maranhão desenvolvendo obras com pessoas negras também, e indígenas, e aí eu fiquei um mês morando em Alcântara, desenvolvendo essas fotografias, que foi um processo muito lindo, muito profundo, de entrega, de confiança, porque trabalhar com a imagem do outro é de uma magnitude indescritível e de uma responsabilidade para a vida toda; e passei em Alcântara, que é um território quilombola, um território indígena, conheci várias… é, conheci o Quilombo de Itamatatiua, que é um quilombo muito bonito, que também me inspirou a continuar viva, e, após um momento em Alcântara, no Maranhão, eu voltei para minha cidade, [no] Espírito Santo, e aqui estou fazendo esse áudio e desenvolvi também, daquele tempo, em 2022, um trabalho de Corpoflor também no Espírito Santo, em Vitória, junto com Rodrigo Jesus, que é o meu assistente de muitos anos, Maxwell Brasileiro, que é meu primo, e Carol Oliveira, que é uma amiga, e aí no final construí um livro de anatomia dizendo sobre esses Corpoflores, que são Corpoflores que eu fiz na praia, dentro da mata, nos rios, aqui em Vitória eu fiz de noite, na praia de noite, todos os Corpoflores tinham essa dimensão de água, então eu criei a Anatomia da água, uma série de livros artesanal, com seis livros artesanais que têm textos, desenhos que eu faço em cada livro, de modo único e também as fotografias desses sete anos de Corpoflor e com essas mais recentes. Esse livro, esse grande livro está sendo mostrado aqui. O livro possui uma dimensão de 48 cm por 33, e ele está sendo demonstrado nesta exposição. A exposição conta com uma grande e larga pilastra preta, escura, porque a página do livro, a capa do livro é preta, e há uma pilastra que você pode andar ao redor dela, e aí ao redor dela você tem as páginas impressas de uma forma… porque o livro é artesanal, então não tem como… como medida de segurança e conservação, não tem como você tocar e passar eles, [porque] as folhas são muito frágeis, então foram tiradas fotos de cada folha, de cada página, e essas folhas foram impressas em outro papel, e esse papel foi organizado de modo circular nessa grande e larga pilastra preta. É uma expografia muito bonita, que também faz parte, corresponde à história circular, história-encruzilhada, que configura, que forma os nossos processos de mudança, de transfiguração, de metamorfose. Eu tentei falar aqui, contextualizar uma pesquisa de sete anos, então é muito difícil, mas também é muito prazeroso esse desafio. Espero que você consiga sentir o Corpoflor a partir das minhas palavras. E é isso. Ótima visita. Beijos.

Artista, escritora e psicóloga clínica, Castiel lida com conceitos da ontologia Bantu, assumindo a cura como um momento de liberdade, através de noções sobre espiritualidade e ancestralidade. Seu livro de artista, composto de fotos, textos, desenhos e outras intervenções, narra a experiência de um corpo que se desloca não mais pela necessidade de fuga ou como resposta à violência, mas impulsionado por sinais de liberdade. O projeto foi feito com a colaboração da artista maranhense Gê Viana.


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