Começa nesta quinta-feira (22) em dezoito cidades brasileiras a décima edição da mostra 8 ½ Festa do Cinema Italiano, que exibirá até o dia 28 dez longas-metragens realizados nos últimos dois anos no país de Rossellini. Os filmes programados mostram que, apesar de distante da sua época áurea (dos anos 1940 aos 1970), a cinematografia italiana ainda exibe vigor e diversidade.
Um dos destaques da programação é o documentário A viagem de Papa Francisco, sobre os périplos do pontífice mundo afora. Mas é provável que outro documentário atraia ainda mais a atenção dos cinéfilos: Sergio Leone – O italiano que inventou a América, centrado na obra do gigante do cinema mundial que nos deu maravilhas como Três homens em conflito, Era uma vez no Oeste e Era uma vez na América.
Entre os filmes de ficção, há um pouco de tudo: drama social (Nostalgia), distopia futurista (Mundo cão), comédia dramática “de época” (A estranha comédia da vida), drama claustrofóbico sobre fanatismo e terrorismo (Profetas), conto infantil-alegórico (Marcel!) e até uma animação em stop-motion (Interdito a cães e italianos).
A seguir, breves comentários sobre alguns destaques da mostra:
Sergio Leone – O italiano que inventou a América, de Francesco Zippel. Documentário convencional, mas eficiente, com rico material de arquivo (entrevistas do próprio Leone, cenas de bastidores, trechos de filmes) e depoimentos de gente como Steven Spielberg, Martin Scorsese, Clint Eastwood e Quentin Tarantino, além de parentes e colaboradores do diretor. Quem chorou vendo Ennio, dedicado ao compositor Ennio Morricone, certamente verterá algumas lágrimas diante deste documentário, que é uma espécie de complemento natural daquele.
A viagem de Papa Francisco, de Gianfranco Rosi. As diversas expedições do papa argentino pelos cinco continentes, em imagens pouco conhecidas, entremeadas com cenas de filmes ficcionais e documentais dos países visitados. Por exemplo, Iracema – Uma transa amazônica, no caso brasileiro, e Memórias do subdesenvolvimento, no caso cubano. O papa é quase um pretexto para abordar criticamente os temas que lhe são caros: a fome no mundo, o drama dos refugiados, a destruição do meio ambiente, as guerras, a intolerância, etc.
Nostagia, de Mario Martone. Depois de 40 anos vivendo no Egito, onde construiu um patrimônio no ramo imobiliário e se converteu ao islamismo, um homem de meia-idade (Pierfrancesco Favino) volta a Nápoles e descobre que seu melhor amigo de infância virou um chefe criminoso (Tommaso Ragno) que arma a juventude do seu bairro para cometer todo tipo de delito. Um padre combativo (Francesco Di Leva) tenta manter os jovens longe do crime por meio da arte e do esporte.
Mundo cão, de Alessandro Celli. Num futuro próximo, a cidade de Taranto foi evacuada por causa da contaminação industrial. O local vira um misto de cidade fantasma, favela e refúgio de um exército de crianças e adolescentes controlados por um chefão impiedoso (Alessandro Borghi). Dois amigos adolescentes sem família aderem ao bando e as coisas se complicam quando eles se infiltram na Nova Taranto, cidade para onde foram os ricos e os turistas. Distopia sobre um mundo em deterioração ambiental e moral. Na primeira cena os dois amigos encontram um crucifixo de madeira e ferro no fundo do mar. Um deles pergunta: “O que é isso?” O outro responde: “Sei lá. Mas deve valer alguma coisa”. Essa “ausência de Deus” dá o tom de todo o filme.
Profetas, de Alessio Cremonini. Uma jornalista italiana (Jasmine Trinca) é sequestrada por membros do Estado Islâmico quando fazia uma reportagem na Síria. A esposa (Isabella Nefar) de um chefe guerrilheiro a mantém como hóspede/refém enquanto tenta convertê-la ao islamismo. Drama interessante sobre o fanatismo religioso e a posição da mulher num contexto teocrático.
A estranha comédia da vida, de Roberto Andò. Uma visita de Luigi Pirandello (Toni Servillo) a Agrigento, na Sicília, serve de ponto de partida para esta recriação ficcional do contexto em que o dramaturgo produz uma de suas peças mais célebres, Seis personagens à procura de um autor. Ficção e realidade, palco e plateia se misturam nesta comédia triste que se equilibra entre a chanchada e a reflexão sobre a arte da representação.
Interdito a cães e italianos, de Alain Unghetto. Um caso singular de documentário em animação stop-motion. O diretor reconta a história de três gerações de sua família de camponeses pobres que no início do século 20 cruzaram os Alpes para buscar trabalho na França. A história é quase banal, mas as técnicas de animação são espetaculares. Foi o filme de encerramento do recente festival É Tudo Verdade, de documentários.
Marcel!, de Jasmine Trinca. O primeiro longa-metragem dirigido pela atriz conta a história de uma garota solitária, magricela e desajeitada (Maayane Conti) cuja mãe (Alba Rohrwacher) lhe dá menos atenção do que ao cachorro com quem contracena em pantomimas de rua (o tal Marcel). A relação entre mãe e filha, que acabam viajando juntas para participar de espetáculos mambembes, é um estudo sobre a solidão narrado com a enganosa singeleza e a síntese visual dos contos infantis, das histórias em quadrinhos e dos desenhos animados.
Onde a vida começa, de Stéphane Freiss. Uma fazenda italiana onde se cultivam limões kosher é visitada anualmente por um grupo de judeus ortodoxos franceses que vão vistoriar e comprar a produção. Numa dessas viagens, o dono da fazenda (Riccardo Scamarcio) se envolve com uma jovem judia (Lou de Laâge) prometida pelos pais a outro rapaz. Drama romântico que lança luz sobre a rigidez opressora dos preceitos religiosos, sobretudo contra as mulheres. Neste último aspecto, forma um curioso par com Profetas.
O décimo longa, Jogada de amor, de Riccardo Milani, é uma refilmagem dispensável da comédia francesa De carona para o amor (2018), de Franck Dubosc, sobre um playboy sedutor que simula ser paraplégico para conquistar uma bela garota na mesma condição. Apesar dos ótimos atores centrais (Pierfrancesco Favino e Miriam Leone) e de alguns bons momentos, é uma comédia romântica moralizante com dramaturgia de telenovela e estética publicitária.