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Visões do real

25 de outubro de 2021

Se há um gênero que se destaca, nítido, no cipoal de títulos da 45ª Mostra de Cinema de São Paulo, é o documentário. Basta um punhado de filmes para atestar a vitalidade e a variedade da produção documental de hoje no mundo. Vamos a alguns deles, sem mais delongas (lembrando que já falamos na semana passada de dois outros: O garoto mais bonito do mundo e Transversais.)

 

Sr. Bachmann e seus alunos (Alemanha), de Maria Speth

Ganhador dos prêmios do júri e do público no Festival de Berlim, é um dos grandes filmes da mostra, não apenas na extensão (três horas e meia), mas principalmente pela riqueza humana contida nele. Quase tudo se passa numa sala de aula, a da última série do primeiro grau de uma escola de Stadtallendorf, na Alemanha, voltada para alunos imigrantes ou filhos de imigrantes. A partir dali eles irão para o ensino médio (com vistas à universidade) ou para a escola técnica.

A relação do Sr. Bachmann do título com seus alunos e alunas, todos na idade difícil entre os treze e os quinze anos, passa não tanto pela transmissão de conhecimento, mas pelo aprendizado recíproco da convivência, da troca de experiências, do respeito ao diferente, do estímulo às potencialidades individuais e à consciência coletiva. Uma espécie de ideal “paulofreiriano” em ato.

São adolescentes oriundos de famílias da Turquia, do Cazaquistão, da Romênia, do Marrocos, etc., incluindo a filha de uma brasileira. Alguns deles, até um ano antes, não falavam uma palavra de alemão.

Impossível saber o quanto há de encenação nas situações apresentadas. A primeira sequência já expõe essa ambiguidade: os alunos entram duas vezes na sala; a segunda é para corrigir algum erro técnico da primeira. Mas depois disso a diretora de certa forma consegue tornar sua câmera “invisível” e tudo flui com um frescor e uma espontaneidade admiráveis.

A situação toda ganha uma densidade humana e política maior quando, numa visita ao museu local, ficamos sabendo que durante o nazismo a cidade de Stadtallendorf foi sede de indústrias bélicas que usavam trabalho forçado de “imigrantes” trazidos dos países ocupados pela Alemanha. A escola, portanto, faz parte de um movimento de compensação histórica, ou pelo menos serve como símbolo de uma política inclusiva possível.

 

Regresso a Reims (França), de Jean-Gabriel Périot

Outro acerto de contas com o passado, na esperança de entender melhor o presente. A partir do livro autobiográfico do filósofo e escritor Didier Eribon, o livro traça uma história da classe trabalhadora francesa na segunda metade do século 20 de uma maneira estimulante e original: sob a locução em off, com trechos do livro de Eribon lidos por uma atriz, imagens de arquivo (documentários, reportagens, filmes de ficção) ilustram, comentam ou problematizam o texto do autor, ele próprio filho de várias gerações de operários franceses.

A linha de argumentação é de que a frustração com a esquerda tradicional empurrou nas últimas décadas os trabalhadores para o populismo de direita e mesmo de extrema-direita. Uma das questões mais polêmicas é a oposição do antigo Partido Comunista Francês à entrada de imigrantes no país, bandeira hoje (e sempre) vinculada à direita xenófoba. As ideias de Eribon podem ser discutíveis, mas a fricção entre texto e imagem (à maneira do que acontecia, por exemplo, no brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Ainouz e Marcelo Gomes) produz momentos luminosos e não raro incômodos.

 

O circo voltou (Brasil), de Paulo Caldas

O Circo Spadoni viaja de São Paulo a Major Isidoro, no sertão de Alagoas, cidade-natal de seu diretor, José Wilson Moura Leite, fundador do célebre Circo-Escola Picadeiro. Neste envolvente road movie vamos conhecendo a trajetória do mestre Zé Wilson e de vários membros da sua família e da sua trupe, ao mesmo tempo em que acompanhamos o relacionamento fugaz e intenso da caravana com as populações dos locais por onde passa – incluindo um quilombo e uma terra indígena.

A par da celebração do circo como espaço de alegria, liberdade e fantasia, há a descoberta, pelos olhos de um menino (Pedro, filho de Zé Wilson), de um Brasil profundo, que respira e pulsa como um organismo vivo.

 

Outros documentários

Jane por Charlotte (França), de Charlotte Gainsbourg. A atriz Charlotte Gainsburg reencontra sua mãe, a cantora e atriz Jane Birkin, e ambas tateiam o passado buscando refazer os nexos de suas vidas, rememorando as relações de Jane com seus filhos e ex-maridos (John Barry, Serge Gainsburg, Jacques Doillon). Com delicadeza, sobre o pano de fundo da indústria cultural e das transformações nos costumes das últimas cinco décadas, emerge aos poucos uma singular relação mãe-filha, bem como uma reflexão sobre a própria maternidade no meio artístico-cinematográfico.

Já que ninguém me tira para dançar (Brasil), de Ana Maria Magalhães. A trajetória efêmera e fulgurante de Leila Diniz (1945-72), contada em primeira pessoa por sua amiga atriz Ana Maria Magalhães. O filme, que começou a ser feito nos anos 1980, costura cenas da própria Leila em cinema, televisão e teatro de revista, com depoimentos de pessoas que conviveram com ela dentro e fora do trabalho: Domingos Oliveira, Paulo José, Marieta Severo, Nelson Pereira dos Santos, Maria Gladys, Hugo Carvana, Luiz Carlos Lacerda, Nelson Sargento, etc. Nunca ficou tão claro o papel libertário da atriz no terreno dos costumes e da sexualidade – e como isso era uma força subversiva no contexto de repressão política e moral da ditadura militar.

Tempo Ruy (Brasil), de Adilson Mendes. Mais do que um documentário sobre Ruy Guerra, é um ensaio cinematográfico com o diretor moçambicano-brasileiro. Em conversas filmadas em sua casa e em seu jardim, o cineasta fala de sua relação com o cinema, com o Brasil, com Glauber Rocha (a contragosto), com Gabriel García Márquez, com o próprio envelhecimento e a perda dos amigos de sua geração. As imagens de arquivo entram com sutileza e precisão, e os diálogos são ao mesmo tempo íntimos e respeitosos, deixando que o cineasta se revele tanto pelo que diz como por seus gestos e seus silêncios. Uma bela estreia do historiador do cinema e pesquisador Adilson Mendes no longa-metragem.