Um dos carros-chefes da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta-feira, é a nova, vigorosa e variada safra de filmes brasileiros. Alguns deles já foram exibidos em outros festivais, como o surpreendente Noites alienígenas, de Sérgio de Carvalho, que venceu o recente Festival de Gramado, e Paloma, de Marcelo Gomes, melhor longa brasileiro no Festival do Rio. A mostra paulistana deste ano será presencial, com uma parte pequena da programação exibida também nas plataformas digitais do Sesc e da SPcine.
Fazendo jus ao título, Noites alienígenas surge em nossa filmografia como um objeto não-identificado. Ambientada na periferia de Rio Branco, essa rara produção acreana foge dos estereótipos, do pitoresco e do folclórico para narrar os dramas de um punhado de jovens encurralados entre a falta de perspectivas materiais e a guerra de facções do tráfico de drogas. Durante o festival de Gramado, elenco e equipe do filme falaram ao o Canal Brasil sobre a experiência. Vale conferir:
O drama se eleva à categoria de tragédia ao mergulhar no inferno particular de dois rapazes, Rivelino (Gabriel Knoxx), e Paulo (Adanilo Reis). O primeiro, de 17 anos, trabalha para Alê (Chico Diaz), um traficante veterano independente, espécie de hippie tardio, obcecado por civilizações antigas e sua suposta relação com extraterrestres. Paulo, um pouco mais velho, é um drogado em estágio crítico de dependência. Para complicar, Rivelino é namorado de Sandra (Gleici Damasceno), mãe de um filho de dois anos de Paulo.
Sandra trabalha de garçonete e planeja estudar medicina na Bolívia ou em São Paulo. Rivelino compõe raps e tem talento para a pintura, mas o desejo de conquistar poder e respeito o empurra para a “Família”, principal facção local do tráfico. Paulo está no fundo do poço: tem alucinações com cobras gigantescas e rouba objetos da mãe indígena e evangélica para sustentar o vício.
Essas histórias cruzadas se desenvolvem com crescente densidade e tensão, com escolhas formais (enquadramento, montagem, ritmo, trilha sonora) quase sempre certeiras na definição tanto dos dramas pessoais como do espaço em que eles ocorrem, entre o urbano e o natural, a cidade e a selva. Sem que vá aqui nenhum spoiler, pode-se dizer que, no fim, o que salva é a selva, com tudo o que ela contém de força vital e cultura ancestral.
A seguir, uma breve seleção pessoal da produção brasileira na mostra paulistana:
Paloma, de Marcelo Gomes. No interior de Pernambuco, Paloma (Kika Sena) trabalha duro na colheita de mamão para realizar o sonho de casar de véu e grinalda com seu namorado (Ridson Reis). O problema é que ela é uma mulher trans e a igreja local se recusa a realizar o casamento. Na tentativa de encontrar uma saída, Paloma percebe que a intolerância não é só do padre, mas de toda a cultura à sua volta, o que inclui o próprio namorado. Um drama belo e pungente, com uma atuação brilhante da protagonista Kika Sena.
Carvão, de Carolina Markowicz. Num vilarejo no interior de São Paulo, uma família pobre sobrevive da produção artesanal de carvão. Irene (Maeve Jinkins) se divide entre cuidar do forno, do filho pequeno e do pai, que praticamente vegeta depois de ter sofrido um derrame. O marido (Rômulo Braga) é pouco menos que um alcoólatra imprestável. Tudo muda quando eles, em troca de dinheiro, são convencidos a hospedar um estrangeiro misterioso (César Bordón), introduzindo ou fazendo vir à tona inesperadas relações criminais, políticas e sexuais.
Kobra auto retrato, de Lina Chamie. Documentário sobre Eduardo Kobra, nosso grande artista visual de rua, narrado pelo próprio, dando conta de sua trajetória da infância difícil na periferia de São Paulo à criação de murais gigantescos em cidades de vários países. A poesia audiovisual do filme dialoga lindamente com as obras do artista, em que o trompe l’oeil e os retratos hiper-realistas de figuras icônicas são refigurados pela cor e pelas formas geométricas, compondo um universo pulsante que ao mesmo tempo embeleza e questiona o espaço urbano. Kobra, aliás, criou o cartaz da atual edição da mostra.
Exu e o universo, de Thiago Zanato. Premiado como melhor documentário no Festival do Rio, o filme busca conhecer e discutir o mais incompreendido dos orixás, Exu, deturpado como “demônio” pelo cristianismo. Tendo como principal guia o nigeriano-brasileiro Adesiná Síkírù Sàlámì, o Professor King, babalorixá e doutor em sociologia, acompanhamos rituais dedicados a Exu em locais tão díspares quanto o Tocantins, Santiago de Compostela e uma aldeia no interior da Eslovênia, além, é claro, de comunidades nigerianas. Um trabalho exemplar de cinema de antropologia viva, fundamental no momento de exacerbação galopante (e relinchante) de intolerância religiosa que estamos vivendo.
A mãe, de Cristiano Burlan. Na periferia de São Paulo, uma mãe solo (Marcélia Cartaxo), ao voltar do trabalho, não encontra em casa o filho adolescente (Dustin Farias). Em sua dolorosa saga em busca do rapaz, ela percebe aos poucos que está pisando em terreno minado por violência policial, crime organizado e vizinhança acuada. Mas segue adiante mesmo assim, com uma força de heroína de tragédia grega ou parábola bíblica. Um papel sob medida para a extraordinária Marcélia Cartaxo.
A filha do palhaço, de Pedro Diógenes. Renato (Demick Lopes), que ganha a vida com espetáculos de humor em que se traveste de mulher escrachada para deleite de frequentadores de churrascarias e casas noturnas, abriga por uns dias a filha adolescente (Lis Sutter), a quem ele só costuma ver uma ou duas vezes por ano. A convivência inesperada e intensiva entre pai e filha – tema recorrente de melodramas em várias cinematografias – recebe aqui um tratamento original e sensível, em que a transgressão e a emoção encontram um equilíbrio admirável.