Entre os 360 filmes da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta-feira, merece atenção especial a grande retrospectiva dedicada a um dos maiores cineastas de todos os tempos, Michelangelo Antonioni. Serão exibidos 21 títulos do diretor, todos eles “obrigatórios”.
A exemplo de tantos outros cineastas de sua geração, Antonioni começou neorrealista, como atestam seus primeiros curtas documentais, realizados no final dos anos 1940: Gente do Pó, Limpeza urbana, Superstições, As mentiras do amor – todos programados na Mostra, que este ano reconquistou o patrocínio da Petrobras e readquire força total depois do trevoso período da pandemia e de um governo inimigo da cultura.
Já nesses primeiros curtas se notam algumas marcas registradas do autor: a precisão dos enquadramentos, a percepção estética do espaço natural e urbano, a atenção às diferenças sociais e culturais. Este último aspecto costuma ser negligenciado quando se aborda a obra do diretor, visto equivocadamente por alguns como “alienado” da política e das questões sociais.
Seres em trânsito
Ao longo dos anos 1950 Antonioni foi se distanciando a passos largos dos princípios estéticos neorrealistas e forjando sua própria poética, em elegantes dramas amorosos ambientados na elite financeira e/ou intelectual: Crimes da alma (ou Crônica de um amor), A dama sem camélias, As amigas.
Se As amigas enfatiza aquela que será uma das constantes da obra do cineasta – o exame da condição feminina na sociedade urbana contemporânea –, O grito (1957) inaugura uma vertente que marcará sua obra até o fim: o deslocamento de personagens inquietos, à deriva, em busca de algo que nem eles próprios sabem bem o que é. Em As amigas, fala-se muito e anda-se relativamente pouco. A partir do O grito a relação se inverte: anda-se cada vez mais e fala-se cada vez menos no cinema de Antonioni.
De A aventura (1960) a Profissão: repórter (1976), de A noite (1961) a Além das nuvens (1995), seus protagonistas estão sempre em trânsito, seja entre continentes, seja no interior de uma cidade ou mesmo de um apartamento. A inquietude leva, no limite, ao questionamento da própria identidade, que tem seu ápice em Profissão: repórter.
Costuma-se celebrar como núcleo criativo do cinema de Antonioni a magnífica “trilogia da incomunicabilidade”: A aventura, A noite e O eclipse (1962). Mas essa nomenclatura se presta a equívocos, dando a impressão de que o problema de seus personagens, e do indivíduo contemporâneo, é uma falha de comunicação. Mas a questão é mais profunda.
Os personagens do diretor não apenas deixam de compreender uns aos outros, mas no mais das vezes não compreendem a si mesmos, não sabem bem de onde vêm suas angústias e seus desejos. Por isso se agitam, atordoados, e são capazes de ações gratuitas, inexplicáveis, como a do arquiteto que derruba tinta no croqui de um rapaz que ele nem conhece, em A noite, ou a do fotógrafo de Blow up, que briga com espectadores de um show de rock para ficar com um pedaço de guitarra que pouco depois ele jogará fora.
Outro aspecto notável de sua obra é seu progressivo domínio das ferramentas expressivas e sua liberdade cada vez maior de romper com os códigos da narrativa realista, o que fica evidente sobretudo em filmes como Blow-up (1966) e Zabriskie Point (1970), realizados sob o influxo da contracultura efervescente nos anos 1960. Um novo olhar sobre uma nova civilização global que se desenhava.
O fascínio pelas possibilidades técnicas, o prazer de experimentar e inventar moveram Antonioni até o fim. Em Deserto vermelho (1964), mandou pintar à mão gramados e árvores para atingir os tons que desejava. No célebre e esplendoroso plano final de Profissão: repórter, concebeu grades de janela que se abriam imperceptivelmente para a passagem da câmera, que faria um lento e elaborado movimento circular até voltar ao quarto onde jazia o protagonista. Em O mistério de Oberwald (1980), último filme com sua musa maior, Monica Vitti, experimentou com as possibilidades plásticas e cromáticas da captação em vídeo, tecnologia que engatinhava na época.
Por qualquer lado que se olhe, é uma obra monumental, inesgotável. O prenome Michelangelo lhe cai bem: Antonioni é um artista dos grandes.
Alguns brasileiros
Na vasta e diversificada programação da 47ª Mostra de SP merece destaque a nova safra de produções nacionais. Algumas foram indicadas por mim há duas semanas, por ocasião do Festival do Rio. Aqui vão alguns outros filmes brasileiros que o blog viu e recomenda:
A alegria é a prova dos nove, de Helena Ignez. Com uma vitalidade notável, a atriz e diretora encarna aqui uma “xamã do prazer feminino”, dando cursos sobre o orgasmo e celebrando uma renovada contracultura. Um filme-manifesto em defesa da liberdade sexual, da canabis, dos sem-terra, dos sem-teto, dos negros, dos indígenas, dos palestinos e de todos os oprimidos do planeta.
O mel é mais doce que o sangue, de André Guerreiro Lopes. Misto sui generis de ficção, ensaio, poesia, performance e documentário em que uma mulher (Helena Ignez) caminha pela cidade de São Paulo puxando numa carrocinha uma espécie de cinetoscópio ambulante. Em seu percurso revelam-se as fraturas sociais, raciais e espirituais da metrópole, bem como as forças que podem levar à sua transformação. Forma um curioso díptico com o filme de Helena Ignez citado acima.
On off, de Lírio Ferreira. O entrecho é o mesmo de Uma simples formalidade, de Giuseppe Tornatore: um escritor em crise é interrogado por um delegado do interior sobre um assassinato ocorrido na região. Mas, se o filme de Tornatore era um suspense policial, aqui se trata de um claustrofóbico pesadelo kafkiano em preto e branco, filmado em dois longos planos-sequências, num tour de force técnico e dramatúrgico.
Saudade fez morada aqui dentro, de Haroldo Borges. Numa cidade do interior baiano, um garoto de quinze anos está ficando cego justamente numa fase de descoberta do mundo e da sua própria sexualidade. Drama desenvolvido com precisão e sensibilidade, revelando um jovem ator extraordinário, Bruno Jefferson, no papel do protagonista.