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A ausência na presença: filmes de Michel Khleifi e Avi Mograbi

10 de setembro de 2024

A Sessão Mutual Films de setembro está em cartaz ao longo do mês no cinema do IMS Paulista, nos dias 11 (com debate), 12 e 25.

Os palestinos, embora sejam vítimas de opressão, também são culpados de oprimir os outros: a população rural, os trabalhadores e as mulheres. Tentei fazer um filme sobre opressão zero. Os judeus opressores, quem são eles? Eles próprios são vítimas de perseguição desumana. No entanto, eles ainda oprimem outro povo, os palestinos. E os palestinos são apenas vítimas ou também são vitimizadores? A resposta é que eles são ambos... As coisas devem ser levadas em todos os níveis, não há sentido em apenas discutir o mal que foi feito. Isso não determinará quem é a vítima e quem é o opressor. Devemos desvendar os sistemas e a lógica que nos tornam potenciais opressores e vítimas.

Michel Khleifi, sobre A memória fértil[1]

Aaron Cutler e Mariana Shellard (curadores da Sessão Mutual Films)

 

Michel Khleifi nasceu em 1950 em Nazaré, dois anos após a eclosão da Primeira Guerra Árabe-Israelense e a incorporação da cidade ao Estado de Israel. Sua família, instalada em Nazaré desde o século XVII, era palestina, cristã de descendência ortodoxa grega e da classe trabalhadora, com um patriarca comunista. O ano do seu nascimento coincidiu com a definição legal de “ausentes presentes” – pessoas que, por não estarem em casa quando a fundação do novo país foi declarada (inclusive por terem fugido da guerra), perderam o direito a suas terras e propriedades. A lei teve impacto sobre integrantes da própria família do cineasta, que ele retratou em seu primeiro filme décadas depois.

Avraham Mograbi nasceu em 1956 em Tel Aviv, a pouco mais de 100 quilômetros de Nazaré. De família judaica, sua mãe ainda jovem deixou a Alemanha em favor do então Mandato Britânico da Palestina na década de 1930, enquanto seu pai nasceu no Líbano, de pais sírios e descendência italiana. O ano de seu nascimento marcou a Segunda Guerra Árabe-Israelense, na qual Israel, Inglaterra e França tentaram tomar controle sobre o canal de Suez, no Egito. Assim como Michel Khleifi, o jovem “Avi” tornou-se ateu e pacifista. E, assim como seu compatriota palestino, o israelense se empenhou em construir uma filmografia que retratou a história e vida de seu povo e sua cultura.

Khleifi cresceu no que ele chegou a chamar de “gueto nazareno”[2], proibido de sair de sua cidade sem a anuência de uma autoridade militar, cuja austeridade embruteceria após a Terceira Guerra Árabe-Israelense de 1967. Ele descobriu o cinema – e imagens do mundo afora – por meio de filmes populares que passavam na única sala em Nazaré e nas escolas fundadas por missionários cristãos. Encantou-se também com o teatro, que conheceu graças ao seu irmão mais velho George (um ator aspirante), e sempre carregava consigo um texto teatral no bolso.

Ele saiu da escola aos 14 anos, em busca de trabalho, que conseguiu em uma oficina mecânica consertando carros, primeiro em Nazaré, depois na cidade israelense de Haifa. O sonho de trabalhar com a Volkswagen na Alemanha Ocidental levou-o a se estabelecer na Bélgica, para onde imigrou em 1970 após visitar um primo que morava lá. Porém, acabou estudando rádio, teatro e televisão na Insas (Instituto Superior das Artes), em Bruxelas. Começou a se alistar nas equipes das obras realizadas pelos integrantes do curso de cinema e a trabalhar com produções televisivas belgas, algo que acabou levando-o de volta para a Palestina.

Na época em que Khleifi dirigia documentários sobre sua terra natal para a principal emissora de TV da Bélgica, o cânone do cinema palestino consistia em filmes propagandísticos comissionados pela militante OLP (Organização pela Libertação da Palestina), muitas vezes dirigidos por estrangeiros em países vizinhos, como Síria e Líbano. O cineasta se questionou sobre como contar a estória de um povo desprovido de memória pictórica e como representar a vida palestina de uma forma mais autêntica.

Começou a trabalhar em seu primeiro longa-metragem ao lado de um cinegrafista com uma linguagem convencional de televisão, que logo foi demitido do projeto, em prol de operadores que entenderam melhor a abordagem mais aberta e sensível que Khleifi buscava. As filmagens ocorreram no território israelense e na Cisjordânia, ocupada a partir de 1967, e se inspiraram nos próprios palestinos que ele admirava, com um enfoque especial nas mulheres que ele acreditava que representavam a essência de sua cultura. “Para atingir as profundezas, era preciso adentrar o mundo interior das personagens e, para isso, desconsiderar as fronteiras entre o documentário e a ficção”, falou décadas depois[3].

Cena de A memória fértil, de Michel Khleifi

O momento em que Khleifi realizou A memória fértil (Al Dhakira al Khasba, 1981) coincidiu com a conclusão dos três anos de serviço militar que Mograbi cumpriu obrigatoriamente como cidadão israelense e o início de seus estudos universitários. Mograbi cresceu dentro do Cinema Mograbi, a primeira sala de cinema no Oriente Médio equipada para passar filmes sonoros, fundada por seu avô em 1930 logo após sua chegada em Tel Aviv de Damasco. O espaço, extraordinariamente popular, desenhado em estilo art déco, existiu até 1986, quando foi demolido após um incêndio. Foi um lugar de realização de enormes celebrações no final de 1947, após o voto das Nações Unidas a favor da partilha da Palestina em territórios judeus e árabes. E foi também onde Avi assistiu a milhares de filmes nacionais e estrangeiros, sonhando em se tornar um diretor de cinema.

O jovem, porém, foi desencorajado a estudar cinema por seu pai, por ser uma carreira com poucas chances de retorno financeiro. Ele então estudou filosofia e artes plásticas entre 1979 e 1982, quando foi convocado pelas Forças de Defesa de Israel para servir na invasão do Líbano, lançada para expulsar a OLP e ocupar o sul do país. Mograbi considerava a guerra injusta e se recusou a participar, e, por isso, cumpriu uma sentença de prisão de 35 dias.

A experiência fortaleceu suas crenças políticas esquerdistas, especialmente em relação à grande desigualdade social e legal que percebeu entre os habitantes do seu país. Tornou-se um crítico especialmente vocal da ocupação militar israelense de terras predominante árabes, tanto como ativista quanto como artista e cineasta. Por exemplo, seu documentário Vingue tudo, mas deixe um de meus olhos (Nekam achat mishtey eynay, 2005) critica o radicalismo da pedagogia israelense ao criar paralelos implícitos entre cenas de contação de histórias para crianças, adolescentes e turistas judeus sobre os violentos mitos judaicos de Sansão e Massada e momentos do comportamento desrespeitoso dos soldados que são alistados para manter a Ocupação. Vingue tudo culmina com Mograbi fora de campo aos gritos, exigindo sem sucesso que os jovens soldados liberem a passagem de civis palestinos que são barrados ao ir para o trabalho ou voltar da escola, e com uma dedicatória aos jovens israelenses que se recusam a servir (entre eles, o filho do diretor). Em uma entrevista sobre o filme, Mograbi falou “Não basta os soldados serem legais e não quererem humilhá-lo. O fato deles estarem lá é um problema em si”[4].

Não há personagens israelenses em A memória fértil, que abre com uma cronologia das mudanças de poder na região entre 1897 e 1967 e fecha com versos do poeta palestino Mahmoud Darwich que condenam a barbárie. O primeiro filme dirigido por um palestino na Palestina histórica mostra os efeitos da Ocupação pelas vidas diárias de duas mulheres e a força delas ao resistirem. A primeira, Roumia Farah Hatoum, é uma querida tia de Khleifi que reside em Nazaré. A senhora de aparência forte, sólida e quase mitológica trabalha incessantemente para manter sua casa, a qual, apesar de habitar, já não detém a posse, pois suas terras foram expropriadas com a colonização sionista quando ela era jovem, com filhos pequenos e recém-enviuvada. Ela foi obrigada a sustentar os filhos sozinha, o que fez cozinhando para um mosteiro por 20 anos.

Ao longo do filme, a mulher mostra para seu sobrinho os rituais e deveres de sua vida cotidiana: costurando maiôs em uma fábrica israelense, cozinhando massa em casa, preparando lã, cantando músicas árabes tradicionais para seu neto recém-nascido e alimentando as galinhas ao seu redor. Na visão de Farah, a terra é dela, apesar de tê-la perdido legalmente. Seus filhos tentam convencê-la a deixar a casa em troca de dinheiro oferecido pelo proprietário israelense para regularizar a situação da propriedade, mas ela se recusa a renunciar ao que define a sua identidade.

A memória fértil também retrata a luta diária da escritora mais jovem Sahar Khalifeh, que vive e trabalha em Ramalá, capital da Cisjordânia. Ao invés da abordagem mais observacional de Roumia Farah, as passagens com Sahar frequentemente tomam a forma de uma conversa. Vemos ela em casa com seus gatos e na rua, indo e voltando de seu trabalho como coordenadora cultural na Universidade de Birzeit, e ouvimos ela contar como se casou aos 18 anos na sua cidade nativa de Nablus, sob forte pressão de sua família conservadora, e se divorciou aos 31 anos, após conseguir independência financeira para sustentar as duas filhas. Às vezes, Khleifi faz perguntas para ela por trás da câmera, como quando indaga: “Você se considera uma mulher palestina militante sob ocupação?”. Ao qual ela responde, calmamente: “Depende do que entende por militante. Eu não organizo manifestações, se é isso que quer dizer. Levo uma vida normal, longe da militância, ou do que considero ser a verdadeira militância.”

Khalifeh chegou a fundar um Centro de Assuntos Femininos em Nablus, em 1988, e a publicar um total de 11 romances, vários dos quais tratam da luta redobrada das mulheres no mundo árabe. Quando Khleifi a filmou, no início de 1980, ela já tinha publicado seu segundo e mais conhecido romance, Al-Subar (1976), que narra a história de dois palestinos: um militante que retorna a Nablus, em uma missão que visa a explodir um ônibus de palestinos que se deslocam para trabalhar em Israel; e seu primo, que deixou a fazenda da família para trabalhar em uma fábrica israelense. O desejo de retratar diferentes, e até contraditórios, pontos de vistas de seu povo era também o que Khleifi almejava em seu cinema, mostrando que a resistência ia muito além da luta armada. Pela conjunção das histórias de Roumia e Sahar, A memória fértil revela como o machismo prevalente na sociedade palestina faz com que a população se mantenha autossubjugada. O filme comunica que não há como ter uma sociedade livre sem acreditar na liberdade de todos.

Em A memória fértil e suas obras subsequentes, Khleifi transformou o desejo da autoafirmação palestina em um retrato conciso de um povo que retoma seu direito de existir. Seu segundo filme, o média-metragem Ma’loul celebra sua destruição (Ma’loul tahtafilu bi damariha, 1984), nasceu a partir de cenas descartadas do corte final de A memória fértil, que mostram a experiência da população de uma vila palestina que foi desapropriada em 1948. No dia da celebração da independência de Israel, quando é dado aos palestinos o direito de transitar livremente pelo país, eles retornam às ruínas do vilarejo Ma’loul para rememorar e contar aos mais jovens a história do seu local de origem. A revisitação é intercalada por cenas em uma sala de aula, em que um professor ensina em árabe a história da fundação do Estado de Israel, justapondo o ponto de vista de um sistema de educação imposto sobre um povo com as perspectivas daqueles que passaram pelos eventos narrados.

O imaginário de Khleifi frequentemente estrutura-se em um sistema dicotômico, no qual duas entidades em contradição (modernidade/tradição, homem/mulher, Israel/Palestina, civil/militar) se enfrentam e exprimem uma situação mais complexa do que sua própria oposição. Seu segundo longa-metragem, Casamento na Galileia (Urs al-jalil, 1987), evidencia isso ao utilizar uma narrativa ficcional em que o governador de uma vila palestina decide realizar uma grande e tradicional festa de casamento para seu filho, mesmo sob toque de recolher imposto pelos militares israelenses. O governador então concorda em ter como convidado de honra a autoridade israelense local, o que enfurece a população da aldeia. A longa celebração, que se encerraria apenas após a consumação do ato sexual entre os recém-casados, se estende até quando a presença dos indesejados convidados leva o noivo desmoralizado à impotência. Uma conciliação entre forças em oposição se torna necessária para garantir o futuro da comunidade.

Durante anos, Khleifi foi o único cineasta palestino a realizar filmes em sua terra natal e influenciou uma geração de diretores que surgiu a partir dos anos 1990. Em Cântico das pedras (Nashid el-Hajar, 1990), ele faz uma reflexão poética sobre as revoltas populares contra os militares israelenses nos Territórios Ocupados durante os anos da Primeira Intifada (1986-1994), a partir de dois conjuntos de materiais intercalados: cenas documentais que evidenciam os danos físicos sofridos pela população local; e cenas ficcionais de um homem e uma mulher, amantes palestinos, que se reencontram após duas décadas de separação. O documentário Casamentos proibidos na terra sagrada (Forbidden Marriages in the Holy Land, 1994) registra conversas com os integrantes de diversos casais interreligiosos em Israel e nos Territórios Ocupados. Filmado com crianças da região, O conto das três joias (Hikayatul jawahiri thalath, 1995) – o primeiro longa-metragem realizado na Faixa de Gaza – se apresenta como uma fábula lírica, sobre um menino de 12 anos em busca dos tesouros que podem ganhar o coração de sua amada, na qual as fantasias de tempos antigos são tristemente rompidas pela realidade do presente.

Uma presença regular ao lado de Michel foi seu irmão George, que trabalhou como coordenador de produção na maioria dos seus filmes e eventualmente em diversos outros filmes feitos por cineastas palestinos. George Khleifi também atuou como uma ponte para pesquisadores e programadores israelenses que queriam conhecer essas produções. Entre os interessados, estava Avi Mograbi, que frequentemente buscou a ajuda do seu amigo palestino ao longo dos seis anos em que programou (junto à produtora israelense Osnat Trabelsi) um cineclube mensal na Cinemateca de Tel Aviv chamado O Clube da Ocupação[5].

Cena de Uma vez entrei num jardim, de Avi Mograbi

Mograbi voltou ao mundo do cinema na década de 1980, ao trabalhar como assistente de direção em produções locais. Se deu conta, a partir de uma história de jornal, de que o documentário era um campo rico para desenvolver seus interesses. O média-metragem documental A reconstrução (Há-Shich’zoor, 1994) usa imagens de arquivo para relatar as circunstâncias que resultaram no aprisionamento de cinco jovens árabes de classe trabalhadora pelo assassinato de um adolescente israelense em Haifa. O filme detalha como as principais evidências contra os homens – suas próprias reconstruções do crime – foram claramente ditadas a eles pelos policiais, e conclui dizendo que, anos depois, eles continuam esperando a análise jurídica de seu apelo[6].

Mograbi incumbiu-se de desmascarar a natureza grotesca dos discursos oficiais das autoridades de seu país. Em seu primeiro longa-metragem, Como aprendi a superar meu medo e amar Ariel Sharon (Eich hifsakti l’fahed v’lamadeti l’ehov et Ariel Sharon, 1997), ele narra como o processo de filmar o notório ex-general e político de direita durante a campanha eleitoral israelense de 1996 (na qual Benjamin Netanyahu conseguiu seu primeiro mandato dcomo primeiro-ministro) resultou em um encantamento pela natureza paternal de sua figura gigantesca. É o primeiro de vários filmes em que o cineasta aparece em frente às câmeras como protagonista – dessa vez, com um perfil satírico que, apesar de seus melhores esforços, se torna cúmplice de seu governo.

Em Feliz aniversário, sr. Mograbi (Yum huledet same’ach mar Mograbi, 1999), o personagem de Mograbi ganha uma propriedade maior do que aquela que havia comprado. Enquanto delibera sobre o dever de admitir o erro ao seu vizinho injustiçado, recebe duas propostas de trabalho: uma da televisão israelense, para filmar as celebrações do 50º aniversário do Estado de Israel; outra da televisão palestina, para auxiliar em um programa especial sobre o 50º aniversário da Nakba (“a catástrofe”, em árabe, que colocou mais de 700 mil palestinos na condição de refugiados). No processo, o artista e cidadão israelense é confrontado com sua própria realidade conflitante.

O trabalho do “sr. Mograbi” no projeto palestino envolve filmar os locais das aldeias palestinas destruídas em 1948. Entre elas, a aldeia galileana Saffuriya, a seis quilômetros de Nazaré, cuja população de cinco mil habitantes foi evacuada para virar o povoado israelense de Tsippori, em 1949. As pessoas que consequentemente se tornaram “ausentes presentes” incluíram Ali Al-Azhari, o professor de árabe de Mograbi e protagonista de um de seus filmes mais comoventes, Uma vez entrei num jardim (Nichnasti pa’am lagan, 2012). Ao narrar a história de Ali ao lado da história de sua própria família, Mograbi apresenta a força e a tragedia de uma pessoa que se tornou um refugiado em seu próprio país.

A motivação para fazer Uma vez entrei num jardim inicialmente veio de uma parceria entre Mograbi e o cineasta e artista visual libanês Akram Zaatari, que o convidou para colaborar em uma performance realizada em 2010 e chamada A Conversation with an Imagined Israeli Filmmaker Named Avi Mograbi. O evento, que aconteceu em um momento em que a lei libanesa proibia o contato entre cidadãos libaneses e israelenses devido à Guerra do Líbano de 2006, consistiu em uma troca de imagens e documentos de familiares por Skype entre os dois artistas. Uma figura que Mograbi pesquisou no processo foi Marcel Mograbi, primo do pai do cineasta, um judeu libanês que, no momento da separação e independência de Israel, permaneceu em Beirute, porém, como costumava fazer, continuava viajando da capital libanesa para Tel Aviv. A proibição desse deslocamento, que entrou em vigor quando, na formação do Estado judeu, os dois países se tornaram inimigos, não era reconhecida ou aceita pelo parente de Avi.

A partir disso, Mograbi se interessou em retraçar a história da parte libanesa de sua família. Como vários de seus parentes falavam árabe, e não hebraico, Avi convidou Ali para ajudar na investigação e interpretação. A primeira parte de Uma vez entrei num jardim apresenta conversas entre ele e seu ator principal a respeito de como devem prosseguir, o que inclui a decisão de atribuir aos dois o controle sobre o corte final do filme. Ironicamente, eles descobrem que suas famílias têm algo a mais em comum, o direito de ir e vir coibido. Em uma cena na cozinha de Mograbi, Ali (que nasceu justamente em 1948) declara: “Pensava que só prendiam os judeus em guetos modernos. Então eu percebi, quem estava num gueto? Sou um refém no gueto deles.”

Apesar das frustrações e injustiças que Uma vez entrei num jardim expressa, o filme acaba sendo o mais otimista de Mograbi, ao vislumbrar uma possível convivência no meio da adversidade. Isso é dado não só pela dinâmica calorosa entre Ali e Avi, mas também pela inclusão da filha de Ali, Yasmin, uma garota de 10 anos que acompanha a equipe a partir da metade do filme. Ela conta sobre o racismo que enfrenta na escola em Tel Aviv por ser fruto de uma união interreligiosa, e, quando visita o lugar onde seu pai nasceu, reage contra a placa que proíbe a entrada de “estranhos” (leia-se, não judeus). Seu gesto de chutar terra ao redor da placa representa tanto um esforço de enterrar um passado quanto uma esperança para o futuro. Ali reflete, na saída do que uma vez foi Saffuriya, sobre a solução que ele mesmo encontrou ao problema de aprender quando criança que os judeus eram demônios: viver entre eles e ter uma filha com uma mulher judia.

Uma vez entrei num jardim não foi lançado comercialmente em Israel e teve pouca repercussão midiática no país – algo comum para os filmes de Mograbi, apesar de sua presença regular no circuito de festivais internacionais. Além de ser cineasta, Mograbi é um dos fundadores da Shovrim Shtika (conhecida internacionalmente como Breaking the Silence, [quebrando o silêncio, em tradução livre]), que, desde 2004, recolhe e divulga depoimentos de soldados e ex-soldados israelenses dissidentes, com a meta de pôr um fim à Ocupação[7]. Em contraponto à limitada recepção local de suas obras autorais, Mograbi falou em diversas ocasiões que a ONG é a organização mais odiada de seu país.

O cineasta até usou depoimentos da Shovrim Shtika como material em alguns dos seus filmes, entre eles, Os primeiros 54 anos – Pequeno manual para ocupação militar (The First 54 Years – An Abbreviated Manual for Military Occupation, 2021). O longa-metragem mais recente de Mograbi mais uma vez justapõe realidades diversas por meio de registros documentais de ex-soldados que ficaram traumatizados por suas experiências nos Territórios Ocupados, intercalados com cenas mais performáticas do diretor em sua sala de estar explicando o que “você” deve fazer para controlar uma população local e executar a sua ocupação da mais perfeita forma.

Os primeiros 54 anos foi criticado, entre outros motivos, por não incluir nenhuma voz palestina. Mas a presença palestina é forte no filme, de uma forma que Mograbi explicou alguns anos antes do lançamento da obra. A ocasião foi a edição de 2019 no festival de documentários e direitos humanos One World Romania, na qual ele e Michel Khleifi (cujo último filme, o autorretrato ficcional Zindeeq, foi lançado em 2009) receberam retrospectivas de suas obras[8]. Mograbi disse em um debate:[9]

Eu acho que o que Israel mais deseja é que os palestinos permaneçam sem rosto, para que eles fiquem de certa forma escondidos e desumanizados. E, como consequência disso, não valeria a pena se preocupar com suas vidas. Mas veja, estamos falando de um estado de guerra que existe há 70 anos. A Ocupação tem apenas 51 anos, mas Israel nasceu há 70 anos com uma expulsão horrível de muitos palestinos e a criação do problema dos refugiados palestinos. E, imagine só, Israel é um Estado que foi criado por refugiados e para refugiados, e de repente nós criamos refugiados. Você tem que encontrar uma maneira psicológica de viver com isso. E nós vivemos com isso — ou a maioria de nós vive com isso.

A Sessão Mutual Films de setembro: A ausência na presença: filmes de Michel Khleifi e Avi Mograbi é dedicada às memorias do cineasta e escritor argentino Edgardo Cozarinsky (1939-2024), da crítica literária austro-americana Marjorie Perloff (1931-2024) e do empreiteiro imobiliário norte-americano Milton Cutler (1930-2024) – três judeus cujas famílias saíram da Europa em busca de uma vida melhor.

 


 

[1] Citado em inglês em uma entrevista com Khleifi de 2003 no livro Palestinian Cinema: Landscape, Trauma and Memory, de Nurith Gertz e George Khleifi.

[2] Citado em inglês em uma entrevista de 2015 com Khleifi, realizada pela professora e pesquisadora Isis Nusair para o site Jadaliyya.

[3] A citação se encontra na entrevista com o cineasta no livro de Nurith Gertz e George Khleifi.

[4] A fala de Mograbi vem de uma entrevista incluída no DVD de Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos lançado pela Second Run.

[5] Mais informações sobre o cineclube, que funcionou entre 2001 e 2006, no portal Variety (em inglês).

[6] Este filme, como a grande maioria dos filmes de Avi Mograbi, está disponível para ser assistido gratuitamente, com legendas em vários idiomas, no site do cineasta AVI Mograbi Filmmaker.

[7] Mais informações sobre esta organização podem ser encontradas no site Breaking the Silence.

[8] Avi Mograbi & Michel Khleifi at OWR12 no portal One World Romania (em inglês).

[9] Debate completo realizado em inglês após a exibição do filme de Mograbi Z32 (2008) no YouTube.