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Felicidade miúda

19 de maio de 2022

Um pequeno grande filme, lançado em poucas salas país afora, corre o risco de passar batido, esmagado pelo som e a fúria dos top guns e dos homens bombados do norte. Sua força está justamente em sua aparente singeleza, em sua poesia discreta. Estou falando de A felicidade das coisas, longa-metragem de estreia de Thais Fujinaga, premiado no festival Aruanda (João Pessoa) e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Contam-se ali alguns dias de uma família de classe média em sua casa de praia, em Caraguatatuba. Paula (Patricia Savary), grávida de sete ou oito meses, está às voltas com a instalação, no local, de uma piscina pré-fabricada. Sua filha pequena, Gaby (Lavinia Castelari, talento extraordinário), passa a maior parte do tempo com a avó (Magali Biff). E o filho adolescente, Guto (Messias Gois), se entretém observando os meninos que vêm nadar ou pescar no rio atrás da casa.

 

Poesia da observação

O grande ausente é o marido de Paula, com quem ela fala ao telefone para resolver problemas de dinheiro e narrar o andamento das obras. Das conversas, só ouvimos a parte dela, e ainda assim apenas fragmentos, mas o bastante para construirmos a situação geral da família e da relação do casal.

Em torno do acontecimento central – a instalação da piscina, que implica o entendimento com os operários, a compra de material, os perrengues financeiros, as discussões telefônicas do casal – o filme se dedica a observar atentamente os quatro personagens principais: mãe, filhos, avó. Cada um deles emerge como um indivíduo vivo, complexo, em movimento e transformação.

O filme extrai seu encanto e sua poesia dessa capacidade de observação das coisas miúdas que, afinal, compõem a vida. Um olhar paciente, que perscruta sem comentar ou julgar. Mas a sensação de frescor e espontaneidade esconde uma grande precisão e sutileza na escolha daquilo que é mostrado.

Tomemos um exemplo aleatório. A pequena Gaby surrupia o maço de cigarros da mãe e despeja-os, um por um, no grande buraco retangular de terra onde deve ser instalada a piscina. Depois ela pula para dentro do buraco para tentar escondê-los, jogando terra sobre eles e pisando em cima. Terminado mal e porcamente o serviço, Gaby olha em volta e se dá conta de que não consegue sair sozinha do buraco. Começa a chamar, timidamente: “Mãe, mãããee.”

É uma cena encantadora, que expõe a esperteza, o engenho e a ingenuidade da menina, ao mesmo tempo em que revela seu desagrado quanto ao vício tabagista da mãe durante a gravidez, sem que nenhuma palavra precise ser dita. A sequência, rodada com poucos cortes e movimentos de câmera, exemplifica a estratégia narrativa da diretora: pegar os personagens “desprevenidos”, como se ninguém os visse.

 

Espaço vivo

Outra qualidade do filme é a captação do espaço e de sua atmosfera: há a praia feiosa de areia dura, a casa, o quintal com a piscina de fibra “em pé” ao lado do buraco, o rio meio ameaçador, a ilha fluvial onde fica o clube que, por não serem sócios, eles podem visitar, mas não usufruir. Cada um desses lugares tem significados e energias ocultos, que se desvelam aos poucos.

Do ponto de vista da construção dramática, dois personagens parecem concentrar a tensão: primeiro, e de modo mais evidente Paula, a mãe, que condensa em si, além da filha que vai nascer, todos os problemas materiais, conjugais e familiares; depois, também Guto, o adolescente calado e inquieto, atraído pela perspectiva de aventura representada pelos outros garotos. É ele o responsável pela sequência noturna de suspense e incerteza que abala a placidez narrativa do filme.

A tensão de Paula é centrípeta, para-raios de todos os problemas; a de Guto é centrífuga, aberta aos perigos do mundo. Não por acaso os dois protagonizam a belíssima sequência final, na roda-gigante de um parque de diversões fechado.

É possível ver pontos de contato entre A felicidade das coisas e um filme “familiar” como Benzinho, de Gustavo Pizzi, ou com o cinema do cotidiano de diretoras como Anna Muylaert e Sandra Kogut. Sua afinidade maior, porém, parece ser com os cineastas mineiros de Contagem, André Novais Oliveira (Temporada) e Gabriel Martins (No coração do mundo), sempre atentos às miudezas da vida real, sempre buscando a beleza nos lugares à margem, onde menos se espera encontrá-la. Não por acaso, o filme é produzido pela Filmes de Plástico, a produtora dos mineiros.

Filiações e afinidades à parte, Thais Fujinaga demonstra em seu longa de estreia uma originalidade, um vigor e uma segurança notáveis. Que venham muitos outros.

 

Obra-prima para todos

Um dos mais belos filmes da história do cinema, Ordet – A palavra (1955), do dinamarquês Carl Dreyer, entra em cartaz nesta quinta-feira, 19 de maio, na plataforma gratuita de streaming do Sesc. Escrevi sobre ele quando foi exibido na Sessão Mutual Films do IMS, há três anos. Não é preciso ter crença religiosa nenhuma para se comover com essa obra-prima. Apenas alguma fé na arte, no cinema, na vida.