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A voz do morro

29 de maio de 2024

A filha do palhaço está em cartaz no cinemas do IMS Paulista em junho.

 

Dois belos filmes que entram em cartaz nesta quinta-feira atestam o vigor e a diversidade do cinema brasileiro atual: o carioca A festa de Léo, de Luciana Bezerra e Gustavo Melo, e o cearense A filha do palhaço, de Pedro Diógenes.

Primeiro longa-metragem produzido pelo grupo Nós do Morro, A festa de Léo é um vibrante drama social escrito, dirigido e protagonizado por artistas oriundos da favela do Vidigal, encravada entre bairros nobres da zona sul do Rio de Janeiro. Acompanha um dia particularmente conturbado na vida da trabalhadora Rita (Cintia Rosa), empenhada em viabilizar a festa de aniversário de dez anos de seu filho Leonardo (Arthur Ferreira) e, ao mesmo tempo, tentar livrar o ex-marido Dudu (Jonathan Haagensen), pai do garoto, de ser morto por conta de uma dívida com traficantes.

Essa odisseia urbana acaba por compor um vívido painel da vida na comunidade, com uma riqueza de personagens e situações geralmente ignorada nos “filmes de favela” feitos por cineastas “do asfalto”, tendentes a uma visão unidimensional do morro como território de violência e crime.

 

A favela e a cidade

Só essa mudança de perspectiva – a cidade vista da favela, e não o contrário – já bastaria para caracterizar A festa de Léo como um acontecimento social e cultural. Acontece que, além disso, o filme é muito bom, essencialmente por dois motivos: 1. Sua hábil costura dramática, em que os mais variados eventos (jogo de futebol, construção de uma laje, o trabalho numa barraca de praia, brigas de casal, conversas de boteco, festas, rituais religiosos) se articulam e contribuem para o suspense crescente; 2. O sensível aproveitamento da topografia da favela, com seus becos e labirintos, sua “afroarquitetura” criativa, seus pináculos impossíveis debruçados sobre a imensidão do mar.

Desde o belíssimo plano inicial – uma imagem aérea noturna que percorre o morro e se fecha na janela iluminada da casa de Rita –, uma câmera fluida e inquieta conduz o espectador pelas entranhas de um universo em perpétuo movimento, repleto de frestas, desvãos e surpresas. Não há nesse movimento nenhum voyeurismo da miséria, mas sim uma atenção à vida que pulsa, aos pequenos e grandes dramas de cada um.

Na profusão de histórias apenas esboçadas em torno da trajetória de Rita, emerge sempre a dimensão ético-política, o balanço entre o interesse pessoal e o pertencimento coletivo. Do garoto Léo a sua veneranda bisavó, todos trafegam no fio da navalha, equilibrando-se entre salvar a própria pele e ser solidário com o outro – seja este outro o pai, a vizinha, o namorado, o companheiro de time ou a colega de trabalho.

O olhar é inequivocamente feminino: mulheres fortes e amorosas às voltas com homens fracos ou brutos, com raras exceções. Entre o suspense e o prazer, a dor e a alegria, é todo um organismo coletivo que respira na tela. Nas condições mais adversas, o mero ato de sobreviver pode ser uma festa.

 

A filha do palhaço

Ainda que também atento ao contexto sócio-cultural que o cerca e atravessa, A filha do palhaço é, de certo modo, um drama mais íntimo, concentrado na relação entre um pai e uma filha (numa curiosa simetria com A festa de Léo, que tratava de uma mãe e um filho).

No filme de Pedro Diógenes o pai é Renato (Demick Lopes), um ator cômico que se traveste da debochada Silvanelly em esquetes de humor para turistas em bares de segunda categoria de Fortaleza. Uma espécie de stand-up circense. Sua filha de 14 anos Joana (Sutter Lis), que ele só vê de tempos em tempos, vem passar uns dias em seu apartamento, escondida da mãe.

A partir dessa situação dramática recorrente no cinema – pai e filha se reaproximando aos trancos depois de anos de distanciamento –, o filme trilha caminhos inesperados, com os dois personagens trocando eventualmente de posição no que se refere a temas como proteção, educação, autoridade. O afeto brota do atrito e da diferença, é um aprendizado permanente. Uma educação sentimental de mão dupla, em que a sexualidade, como não poderia deixar de ser, está no centro.

Embutida nesse “romance de formação” talvez se possa detectar uma homenagem oblíqua à tradição do exuberante humor popular cearense, que vem de Chico Anysio até Edmilson Filho, passando por Renato Aragão, Tom Cavalcante e o cantor Falcão. A propósito: Silvanelly é inspirada na personagem Raimundinha, criada pelo humorista Paulo Diógenes (1961-2004), primo do diretor. Amor e humor poucas vezes foram tão indissociáveis.