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A graça de Greice

18 de julho de 2024

Greice está em cartaz no cinemas do IMS Paulista e IMS Poços em julho.

 

A palavra graça envolve múltiplos significados: comicidade, elegância, encanto, leveza. Todos eles se aplicam a Greice, longa-metragem luso-brasileiro do cearense Leonardo Mouramateus que estreia nos cinemas nesta quinta-feira.

Aplicam-se também à protagonista Greice (Amandyra), jovem de Fortaleza que estuda na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Sua vida parece regida pelo acaso, ou antes, pela certeza de que ela saberá se virar em qualquer circunstância, por força de seu carisma, de sua beleza e de uma boa dose astúcia.

Greice vive em Portugal com um visto de estudante, mas trabalha como assistente da cantora e dançarina Clea (Isabél Zuaa, numa performance fugaz e vigorosa que lembra Zezé Motta em Xica da Silva) e cuida de um quiosque de café no centro de Lisboa. Um incidente ocorrido numa festa de recepção aos calouros da faculdade faz com que Greice perca sua matrícula e, consequentemente, seu visto. Ela volta então para Fortaleza, talvez fugida, talvez para regularizar sua documentação.

 

Espírito lúdico

Talvez é uma palavra que se justifica sempre nessa narrativa, por conta da personalidade elusiva de Greice, mas também pela organização do relato quase como um quebra-cabeças. Não por acaso, tudo começa e termina com uma “caça ao tesouro” organizada na festa para os calouros. O espírito lúdico governa a construção do filme, suas idas e vindas no tempo, suas elipses espaciais e temporais, suas sobreposições de diálogos de uma cena sobre imagens de outra.

Durante boa parte do tempo, Greice é uma fingidora que inventa mentirinhas para se safar de apuros ou conseguir alguma vantagem. Em pleno calor cearense, por exemplo, ela se encapota para fazer de conta que está no inverno português ao falar por Skype com a mãe.

Há em Greice, portanto, um pouco de romance picaresco ou de comédia de trapaça, à maneira do norte-americano Jogo de emoções (David Mamet, 1987), do argentino Nove rainhas (Fabián Bielinsky) ou do brasileiro Vai trabalhar vagabundo (Hugo Carvana, 1973). Mas falta à personagem Greice o amoralismo, o cinismo, o desejo de enganar que costuma imperar no gênero. Nela, tudo parece espontâneo e natural. Como diz a cantora Clea, “Greice é amiga das circunstâncias; transforma a mentira em verdade e escreve de trás pra frente”.

É com a mesma leveza e a mesma sagacidade que o diretor Leonardo Mouramateus narra o percurso de sua personagem fingidora, que entretanto nos mostra, por um momento, “a dor que deveras sente”, quando está sozinha, num quarto de hotel, ouvindo sua mãe ao telefone. Significativamente, ela retira então a máscara cosmética que está usando. Com habilidade e discrição, a cena se desenvolve sem música, sem ênfase, e termina com Greice sentada no vaso sanitário. Todo o contrário de um melodrama.

 

Equilíbrio e fluência

Esboça-se também uma comédia romântica, mediante o envolvimento improvável de Greice com Enrique (o cantor cearense Dipas), empregado do hotel em que ela está hospedada em Fortaleza. Também mototaxista, cantor e dançarino nas horas vagas, Enrique é outro pícaro romântico e de bom caráter.

Mas Mouramateus não deixa que seu filme se enquadre em nenhum gênero específico, mantendo-o suspenso num ponto de equilíbrio entre várias possibilidades – exatamente como seus personagens. Disso resulta uma sensação de liberdade muito rara no cinema de hoje.

Um dos momentos altos dessa poética do jogo e do prazer é o plano-sequência em que Enrique demonstra e pratica com seus companheiros a coreografia com que eles vão disputar um “campeonato de swingueira”. A câmera descreve, sem cortes, um movimento de 360 graus acompanhando a ação dos personagens, os diálogos, o ritmo da dança. Um tour de force que deve ter custado muito tempo de preparação e ensaio, mas que se desenvolve na tela como a coisa mais natural do mundo. Como no verso de Drummond, “já não sei se é jogo, ou se poesia”.

A par do roteiro engenhoso, a fluência narrativa deve muito à montagem precisa e delicada de Karen Akerman e sobretudo ao frescor e ao talento do jovem elenco. Numa piscadela para o público, a revelar o caráter de faz-de-conta do filme, o ator Mauro Soares encarna dois papéis, o do namorado português de Greice e o do funcionário do consulado lusitano em Fortaleza, sem que a protagonista estranhe minimamente a “semelhança” entre ambos. Do mesmo modo, a atriz portuguesa Filipa Matta representa jocosamente duas funcionárias da Faculdade de Belas Artes que nem sequer são parentes.

Temas candentes de nossa época –os incêndios florestais potencializados pelo aquecimento global, a ascensão da extrema direita no Brasil, etc. – afloram de modo sutil, como que nas bordas do quadro. O espectador atento não deixará de percebê-los.

Com todos os méritos, Greice conquistou o prêmio de melhor direção no festival IndieLisboa e os de melhor filme, roteiro e atriz (Amandyra) no Olhar de Cinema, de Curitiba.