A mulher de todos (1969) e A miss e o dinossauro (2005) são os filmes da Sessão Cinética de agosto de 2023, que acontece em 17/8 no IMS Paulista com a presença de Helena Ignez e dos críticos da revista Cinética.
A rejeição ao establishment não é feita por fálicos fuzis. A contrapartida à militarização é – em A mulher de todos – a volúpia carnal de uma mulher. O espaço do coletivo não é a organização de assembleias e palanques políticos, mas o gesto colérico de amor de Angela Carne e Osso ao dizer: “Eu amaria todos os homens do mundo”. A erótica resiste ao entojo do poder policial adestrador. Helena Ignez veicula em seu corpo a personagem Angela, o corpo indócil sobre o qual não recaem as regras sociais, a “inimiga número um dos homens”, a que conquista todos seus homens e os larga sem melindres.
Como atriz e como produtora, Helena construiu parte do que seria um período incontornável do cinema brasileiro. Ganhou inúmeros prêmios e foi fundadora e idealizadora da produtora carioca Belair, junto a Julio Bressane e Rogério Sganzerla. Como um lampejo que cruzou o céu do cinema brasileiro, a Belair foi um coletivo que mal nasceu e foi implodido pelos adventos autoritários que tomavam conta do país em curso desde meados dos anos 1960. Forjada em meio a agitações socioculturais, o coletivo teve uma breve existência de menos de quatro meses, entre fevereiro e maio de 1970, e sete filmes, que culminou com o exílio de seus membros.
O curta-metragem A miss e o dinossauro (2005) é o segundo filme dirigido por Helena Ignez depois de seu retorno ao Brasil. Ainda que já houvesse retornado seus trabalhos no campo da atuação desde meados dos anos 1980, período em que saiu do exílio, A miss e o dinossauro estabelece um marco tanto em sua carreira de diretora como também em um movimento de mirada ao que havia sido a Belair e quais seriam suas inflexões na contemporaneidade. A investida da diretora de recapitulação de um material da qual ela mesma fez parte produz como efeito um espelhamento fractal. Desmembrar imagens conhecidas e reorganizá-las, em parelha, com arquivos não antes vistos gera um encadeamento de ideias calcado na lembrança, na rememoração, mas que visa à articulação de novos sentidos.
A miss e o dinossauro é um filme sobre um corpo coletivo no derradeiro dia de sua existência. A festa que sobressai ao luto do exílio, a partilha do olhar que é, também, a partilha do desejo de filmar. O curta-metragem de Helena Ignez é um making-of tardiamente elaborado, que desabrocha como retrato-homenagem daqueles últimos momentos de existência da Bel Air, delongando a existência fugaz desse empreendimento. Ao reorganizar, a seus moldes, imagens produzidas à época, Helena Ignez não se deixa inebriar pelo saudosismo. A visada em perspectiva, atualizada, se combina à ternura daqueles fotogramas, e é nesse desmoronamento de expectativas que está a grandiosidade da obra.
O filme dá início ao que seria um projeto híbrido de criação e apropriação de imagens da Belair retrabalhadas pelo olhar de quem a fundou, uma mulher mirando seu próprio passado através dos materiais produzidos pela sua trupe. As reflexões que realiza, entretanto, não se limitam à mera homenagem ao grupo do qual fez parte, mas ensejam debates sobre a realidade social daquele momento, mas, sobretudo, a coloca em discussão com o contemporâneo. Ao se debruçar sobre o arquivo da Belair, Helena Ignez manuseia seu próprio corpo materializado na película, sua atuação experimental reelaborada a partir do olhar de si sobre si, sempre atravessada por esses outros personagens-amigos que permearam aquele momento. Cria-se um duplo, portanto: a intimidade e o público. Os filmes de Helena Ignez se alimentam de imagens, sons e palavras do passado. O filme abraça a melancolia dos eventos ao não se furtar da sensação de finitude que permeia os últimos dias da Belair, a recuperação de um material sensível a nível pessoal e coletivo é o que faz de A miss e o dinossauro um filme que trafega pleno entre a apropriação de frames, o documental e o registro caseiro, meio making-of, meio colagem.
Da esquerda para direita, cenas de A mulher de todos, de Rogério Sganzerla, e de A miss e o dinossauro, de Helena Ignez
Helena detém em suas mãos imagens que ecoam na esfera do privado e do coletivo, que se intercambiam entre si sem hierarquia particular entre o que está no âmbito do íntimo ou do compartilhado, fazendo uma espécie de descentralização anárquica que remete justamente ao material que manipula. O aspecto marginal, aqui, se presentifica na relação desimpedida entre a diretora e as imagens, na liberdade semântica de criação. A desobediência formal como elemento fulcral da elaboração criativa do filme prospera no encadeamento catártico estabelecido entre as cenas, numa busca incessante pela compreensão cinematográfica da baderna que é o Brasil.
Angela Carne e Osso é muitas coisas: ela é casada e é devassa, é apaixonada e desapegada, é envolvente e fria, é ultrapoderosa e ultrassensível. Relacionado à produção marginal, A mulher de todos é uma incursão na vida caótica da protagonista, mediada por uma câmera que se interessa por amplificar. Bastante fragmentário, o filme retrata a viagem de Angela à Ilha dos Prazeres, praia de nudismo onde se permite a maior sorte de libertinagens. Angela é casada com Dr. Plirtz (interpretado por Jô Soares), “o mais boçal dos homens”, empresário rico e abestalhado a quem constantemente trai. Angela é inescrupulosa, seu enfado em relação aos homens se equipara ao tesão que sente por eles, os assalta com seu corpo sempre à mostra e não escanteia seu desejo, seja o conquistar, seja o largar.
A sina marginal repousa no corpo esguio de Angela, espaço físico da contravenção. A superfície interessa ao filme e à protagonista, no sentido material mesmo, em que a linguagem exprime o mesmo temperamento caótico de Angela, em uma espécie de simbiose entre câmera e objeto, que se retroalimentam de suas próprias erupções. A manifestação corpórea é dada através de uma nudez incessante, que tem no pudor uma manifestação forte contra a qual se empenha em acachapar. O pudor é a ordem, é velar o desejo, é a família, é a supressão da sexualidade. Como fábula, Angela é a canibal antropofágica que devora os boçais; como mulher, ela é a antítese do ideal feminino submisso, mas, mais do que isso, ela ultrapassa qualquer conformismo identitário, qualquer regra castradora, qualquer lógica de comportamento “bom-mocista” que a iniba de operar em função de seu próprio desejo. A lei estabelecida por Angela e pela marginalidade enquanto método é a lei orgânica do corpo, que permite a descoberta de algo inesperado frame a frame, membro a membro; é a lei que coloca tudo que se conhece sob suspeita ao mesmo tempo que suspende a vigilância hierarquizada em que os termos que definem a qualidade da linguagem, falada ou manipulada, são erradicados em benefício de um cinema e de uma vida que consegue aproveitar da carne e da carcaça.
Não é propositivo no que tange à busca de uma consagração tradicional, não mira a autorização externa e, ao mesmo tempo, anseia a disrupção interna. Assim como o filme O paraíso proibido (1970), de Carlos Reichenbach, também exibido em Sessão Cinética, estamos diante de filmes que se contentam com seu próprio peso, falam suas próprias línguas insubordinadas à tradução. Reichenbach, Sganzerla e Ignez incorporam a precariedade dos modos de produção “terceiro-mundista” sem que houvesse a pretensão de se fazer um discurso suntuoso marcado por verbos intelectuais, a intenção aqui é outra, é a transmutação do raciocínio do proceder do lixo para ser o lixo. O lixo comporta tudo, não faz a decoupage das carnes nem separa os legumes, não escapa daquilo que jogam dentro dele. O lixo aceita, decompõe, reduz ao chorume todas aquelas partes incongruentes, produz uma matéria (torpe, de fato) que só ele é capaz de produzir em sua resiliência e auto aceitação.
O outro lado da aposta era no vigor do cinema de gênero, reclamam para si elementos cênicos e narrativos clássicos na costura de uma cinematografia heterogênea que indiscriminadamente recolhe suas referências. Em ambos os filmes, cada um à sua maneira, se detecta um humor ácido característico das chanchadas brasileiras, gênero popular que vinha sendo recalcado pela intelectualidade e que, pro Cinema Marginal/Boca do Lixo, retorna com status renovado. Aqui, a lógica mercantil não é, então, afugentada como oposição ao cinema “autoral”; pelo contrário, é a partir dela ou em função dela que muitos desses filmes são feitos. Ainda que com profundas diferenças em termos de estilo e de apostas estéticas, ambos os filmes partilham do desejo de serem vistos e compreendidos como brasileiros na mais profunda de suas contradições.
A batalha não é contra o establishment e contra o cinema comercial, tampouco se ocupa de se opor ao cinema intelectual, é um combate à morosidade dos rótulos, do cinema sem envergadura, desapaixonado. A mulher de todos é um filme chanchadesco, mas também é irônico e vanguardista; tem uma protagonista que cativa, mas que tem motivações torpes. Os pactos imersivos com o espectador são rompidos, caem as cortinas da ilusão, mas, debaixo delas, ainda reside um espetáculo bélico, divertido e amoral. A função política não reside no discurso, mas no gesto mesmo de apreender, no tecido fílmico, a explosão multifacetada que é o Brasil. Angela como metáfora antropofágica, porque ela comporta, em si, todos os discursos, do clássico ao vulgar. Angela é o corpo feroz que não negocia com o poder, porque ela é, em si, seu próprio poder absoluto, sua própria régua, sua própria lei. O Cinema Marginal tem um tanto de Angela em si não porque a fabricou, mas porque a cosmologia caótica que regeu essas forças criativas e a Belair permite que tudo esteja dentro do todo e produz o efeito radical ensejado pelo grupo. Ignez e Sganzerla confabularam um cinema amotinado de referências que mirava, na superfície chamuscada, a elaboração de um retrato brasileiro receptivo a sua própria crueza, desordem e mistificação.