Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Todos os suspeitos

14 de julho de 2023

A noite do dia 12, de Dominik Moll, que entrou em cartaz esta semana, é um caso exemplar de filme que se embrenha num gênero consagrado (o policial, no caso) para transcender e mesmo subverter seus fundamentos.

Em seu primeiro dia como chefe de divisão na cidade francesa de Grenoble, o jovem policial Yohan Vivès (Bastien Bouillon) vê-se às voltas com um crime escabroso e sem testemunhas: num vilarejo da região, uma garota de 21 anos é morta incendiada. Estamos, em princípio, diante de um whodunit (corruptela de who has done it?), o gênero de narrativa em que tudo se resume a descobrir o autor do crime.

Ao longo da investigação, Yohan e sua equipe esmiúçam a vida no lugarejo, ouvindo parentes, amigos e ex-namorados da vítima, a doce e frágil Clara Royer (Lula Cotton-Frapier). No processo, multiplicam-se os suspeitos e a busca parece não levar a lugar algum. A cada passo, vão se frustrando as expectativas dos policiais e, ao mesmo tempo, as do espectador condicionado pelas convenções do gênero.

Masculino/feminino

Pela forma como são conduzidos os interrogatórios e as reuniões internas do grupo de investigadores, não demora a ficar claro que o gênero, ou antes os gêneros que interessam ao diretor e seus roteiristas são o masculino e o feminino. Sob a aparência de naturalidade e espontaneidade, todos os diálogos, olhares e situações apontam para essa dicotomia.

Ocorre um curioso jogo de espelhos: enquanto boa parte dos personagens (incluindo alguns policiais) parece estar julgando a vítima e seu comportamento supostamente promíscuo e inconsequente, o filme nos induz a observar criticamente a mentalidade e a conduta desses próprios personagens. É quase didático nisso.

Ao iluminar as várias formas assumidas pela misoginia no vilarejo e no seio da própria equipe – exclusivamente masculina – de investigadores, o filme expõe o que hoje se costuma chamar de machismo estrutural. A entrada de uma nova juíza e de uma nova policial no caso torna isso ainda mais claro – e, ao mesmo tempo, indica de modo ligeiramente otimista que as coisas começam a mudar.

Mas voltemos às relações do filme com o gênero cinematográfico em que se insere. No policial convencional, o crime bárbaro quase sempre é cometido por um indivíduo excepcionalmente cruel, um psicopata de carteirinha, um ser à margem da espécie humana. Sua punição final é catártica, expiatória, marcando o triunfo da civilização e da boa consciência, de modo que o espectador saia da sessão aliviado e confirmado na boa avaliação que faz de si mesmo. O mal, afinal, foi mantido longe de nós.

Perdidos na noite

Em A noite do dia 12 ocorre o inverso: o espectador – em especial o masculino, mas não só – é instado a olhar para si mesmo e encontrar traços semelhantes aos dos machos problemáticos do filme. É como se o assassinato de Clara fosse uma obra coletiva, da qual participamos por cumplicidade ou omissão.

Sóbrio e objetivo em sua construção narrativa, que se serve discretamente da beleza da região montanhosa de Grenoble, há no filme pelo menos um momento de notável poesia audiovisual: a sequência em que Yohan e a jovem policial Nadia (Mouna Soualem) fazem uma campana noturna no local onde ocorreu o crime. Dentro do carro às escuras, com suas imagens refletidas no vidro, os dois são quase representações essenciais do homem e da mulher, buscando se ver e se compreender mutuamente num mundo à deriva.

A despeito da dureza de suas imagens e de suas conclusões, A noite do dia 12 pode ser visto como uma jornada de esclarecimento e libertação do protagonista. Em vários momentos do filme, como uma pontuação rítmica e dramática, Yohan pedala obsessivamente sua bicicleta num velódromo, volta após volta – “feito um hamster”, nas palavras sarcásticas de um colega. Até que um dia ele rompe esse circuito ensimesmado e sai pedalando por uma estrada de montanha. O avanço estrada acima é árduo, mas quem sabe um dia chegue em algum lugar.