No extremo sul do Brasil, uma menina de 13 anos investiga sua relação com o mundo ao redor e com sua própria sexualidade. Este poderia ser um resumo de A primeira morte de Joana, de Cristiane Oliveira, embora deixando de fora boa parte da riqueza do filme.
Entre a infância e a adolescência, entre a casa e a escola, entre o mundo das meninas e o dos meninos, o percurso de Joana (Letícia Kacperski) se faz de modo hesitante, mas decidido. Tudo começa com a morte de sua tia-avó Rosa (Rosa Campos Velho), uma artesã solteirona que nunca teve um namorado. Essa circunstância singular leva a garota a perscrutar os traços biográficos de Rosa, sem perceber que o que estava procurando entender era seu próprio corpo, suas pulsões e seus medos.
Romance de formação
A diretora Cristiane Oliveira filma esse romance de formação com habilidade e sutileza, entrelaçando de modo orgânico o drama interior de Joana e o ambiente familiar, geográfico e social em que se desenrola.
Na região das grandes lagoas gaúchas – “onde o vento faz a curva”, como brinca uma professora – tudo adquire aos poucos um significado ao mesmo tempo informativo e simbólico, vale dizer, poético: as enormes torres eólicas que as meninas chamam de “cata-ventos”, as algas que proliferam na superfície da lagoa, os bonequinhos de argila criados pela tia-avó, um pequeno altar com velas acesas numa gruta da mata, etc.
A paisagem bucólica esconde mal um ambiente provinciano e opressivo, de reiteração de preconceitos e de controle da conduta alheia. Há coisas que só meninos podem fazer, há afetos e desejos proibidos. A família, a escola, o pastor: toda uma rede de vigilância funciona com o automatismo dos fenômenos da natureza.
A amizade de Joana com a colega de classe Carolina (Isabela Bressane) torna-se alvo de mexericos e zombarias. A própria Joana não compreende bem essa relação e suas reações a ela. Seu corpo ainda é quase um desconhecido em transformação. E ela só tem como espelho e parâmetro a vida das mulheres mais próximas: a avó ainda ativa sexualmente (Lisa Becker), a mãe solitária (Joana Vieira) que prega uma castidade impossível – além, claro, da mencionada tia-avó que teria morrido virgem.
Descobertas tateantes
Essa atenção às tateantes descobertas da protagonista quanto a seus próprios desejos impede o filme de cair no maniqueísmo militante de tantas obras sobre o “empoderamento” da mulher. Encarar a si mesmo é sempre mais difícil que abraçar exteriormente uma identidade, uma causa, um discurso.
A primeira morte de Joana não abandona sua protagonista nem por um momento, espiando com ela por frestas de portas, entreouvindo conversas sussurradas, parecendo oscilar e descobrir junto com a menina os mistérios da condição feminina num ambiente adverso.
Realizado em 2019 (e ambientado em 2007), o filme só agora chega aos cinemas brasileiros, inclusive ao IMS Paulista, depois de ter sido triplamente premiado em Gramado (prêmios da crítica, fotografia e montagem) e percorrido dezenas de festivais mundo afora.
Jair Rodrigues
Um bom documentário sobre uma figura famosa é aquele que vai além da mera hagiografia ou celebração e revela aspectos pouco conhecidos do biografado. É o caso de Jair Rodrigues – Deixa que digam, de Rubens Rewald, em cartaz nos cinemas.
Com sua gestualidade exuberante, seu sorriso do tamanho do mundo, Jair Rodrigues sempre foi visto mais como um “entertainer” do que como um intérprete “sério”, e colocado numa espécie de segunda divisão da música popular brasileira. Se não chega a desfazer esse veredicto, o documentário de Rewald traz ao primeiro plano pelo menos dois aspectos geralmente negligenciados da arte do cantor.
O primeiro tem a ver com sua negritude, que não se expressava em discursos e posicionamentos explícitos (o que lhe rendeu acusações de omissão e alienação), mas no seu modo de cantar e se apresentar no palco. Assim como, em outros registros, Jorge Benjor, Tim Maia e Wilson Simonal, Jair contribuiu para “re-enegrecer” uma música popular que havia embranquecido com a bossa nova.
O outro aspecto que o filme destaca é o trânsito do cantor entre o samba e a música sertaneja. Nascido no interior paulista, trabalhando desde menino na roça, Jair se criou no universo da música caipira da época. Ao se profissionalizar, cantando em boates, no rádio e na televisão, afastou-se por um tempo dessas raízes, mas as reencontrou na maturidade, quando gravou “Majestade, o sabiá”, de Roberta Miranda, alcançando um sucesso que não via desde os tempos do célebre “Fino da Bossa”, programa de TV com Elis Regina. Parecia que tinha nascido para cantar aquilo.
Jair Rodrigues – Deixa que digam é sóbrio, informativo, repleto de material de arquivo e depoimentos bem escolhidos. Seu único esboço de ousadia formal é colocar o cantor Jair Oliveira, filho do biografado, para reproduzir falas do pai, como se interpretasse o seu papel. É, em grande medida, um documentário convencional, desses que têm a modéstia de se recolher na sombra para deixar seu retratado brilhar.