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Oscar Wilde encontra Cronenberg

03 de outubro de 2024

O filme A substância está em cartaz no cinema do IMS Poços em outubro.

 

A substância, de Coralie Fargeat, tem sido visto como um libelo feminista contra a indústria do rejuvenescimento. Mas o interesse principal do filme, a meu ver, está em abordar um tema universal e atemporal – a utopia da eterna juventude – com um enfoque marcadamente contemporâneo.

A esta altura, todos sabem que se trata da história de uma ex-estrela de cinema à beira dos sessenta anos, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), que comanda um programa televisivo de dança aeróbica ou coisa que o valha até ser demitida em favor de uma atriz/dançarina mais jovem. Inconformada com o declínio físico, Elisabeth embarca num experimento científico radical, criando uma segunda versão de si mesma, quarenta anos mais nova (Margaret Qualley).

É um filme desigual, de desenvolvimento arbitrário, transitando por diversos gêneros – do drama existencial à sátira corrosiva, passando pelo “terrir” –, nem sempre com a mesma eficiência. A primeira sequência é um prodígio de síntese, alcançando o máximo de informação/expressão com o mínimo de recursos: com um plongée vertical, vemos a estrela de Elisabeth Sparkle na Calçada da Fama adquirir significados diversos à medida que o tempo avança e a atriz passa do auge à decadência e ao quase esquecimento.

Estética da deformação

A sutileza dessa abertura dá lugar a uma espécie de expressionismo meio aleatório, que usa um tanto sem critério recursos de deformação visual e auditiva para enfatizar seu argumento. Um exemplo: as cenas em que o diretor do programa de fitness (Dennis Quaid) é apresentado em close com uma grande angular, configurando uma imagem grotesca e desagradável.

A caricatura do produtor – um sujeito machista e grosseiro ao extremo – é um dos pontos em que a diretora força a mão em sua perspectiva feminista. O mesmo se pode dizer da ênfase em enquadrar em close os glúteos lisinhos das jovens dançarinas. Pareceria um voyeurismo tipicamente masculino, se a insistência no procedimento não se transfigurasse em seu contrário, tornando fastidiosas todas aquelas bundas de colante. São corpos deserotizados, como figuras de um videogame.

Há aí, entretanto, algo de muito interessante: a constatação de que em primeiríssimo plano, superampliada, qualquer coisa se torna monstruosa: um camarão entrando numa boca, uma azeitona perfurada por um palito... Não chega a ser uma novidade, mas serve como uma espécie de preâmbulo para abordar o essencial do filme: a transformação radical do corpo humano. O horror está no orgânico, visto de uma certa perspectiva.

No fundo, é o mesmo tema fáustico de O retrato de Dorian Gray, obra-prima de Oscar Wilde: a deterioração moral implicada pela busca da juventude física eterna. A diferença é que, a exemplo de tantas narrativas análogas das mais diversas culturas, o prodígio de Dorian Gray é conseguido graças a um sortilégio sobrenatural, e em A substância a maravilha é produzida supostamente pela ciência.

Kubrick e comédia

Esta última circunstância aproxima o filme do universo bioficcional de David Cronenberg, mas suas referências propriamente estéticas parecem estar em outra parte, sobretudo em Kubrick. Há citações mais ou menos explícitas de obras como O iluminado (os longos corredores acarpetados, o sangue que inunda fantasticamente um ambiente), Laranja mecânica (os mencionados closes com lente grande angular, o frenesi de violência da penúltima parte do filme) e até de 2001 (a célebre abertura do poema sinfônico “Also sprach Zarathustra”, de Richard Strauss).

Em sua última parte – os vinte minutos finais, digamos – A substância descamba para a comédia de terror, talvez como forma de alívio depois de uma sequência de brutalidade sangrenta quase intolerável (o confronto entre a protagonista e sua versão jovem).

Tudo somado, é um filme que merece ser visto, desde que não seja levado a sério demais nem em termos de filosofia nem de arte cinematográfica. Ficará provavelmente na história do cinema como uma curiosidade de época, além de um momento corajoso da trajetória pessoal e artística de Demi Moore, aliás tão bela e atraente quanto em seu auge como sex symbol, nos anos 1990.