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A teoria do impostor

02 de maio de 2018

Trabalhando há mais de 20 anos na Espanha, Sergio Oksman, documentarista nascido no Brasil, ganha retrospectiva no IMS Paulista e no IMS Rio de 3 a 13 de maio. Seus filmes, pouco conhecidos em terras brasileiras, trabalham com os limites narrativos no documentário e com possíveis fabulações ao retratar a realidade. Aqui, o cineasta conversa com o professor e crítico italiano Daniele Dottorini.

 

Daniele Dottorini: Gostaria de começar esta conversa sobre as maneiras de escrever um documentário partindo de um filme que, em minha opinião, é um ponto de virada na sua carreira, A esteticista. O filme descreve sua própria transformação. A primeira sequência depois do prólogo é editada como um documentário comum: imagens da personagem, e ela falando dela própria. De repente, o movimento é interrompido, a tela fica preta, e escutamos um telefonema entre você e a protagonista, no qual você menciona que gostaria de alterar o projeto inicial, fazer outro filme. A partir de então, o filme muda dramaticamente, expondo o seu processo, os mecanismos internos do filme.

Sergio Oksman: Não foi um movimento coerente, algo planejado. Até então, eu estava tranquilo com o caminho que escolhi seguir, com a abordagem de reportagem que usava para construir meus filmes, tanto faz qual fosse o assunto. Minha abordagem ao cinema documental era a de fazer longas reportagens e, até então, eu estava satisfeito com isso. Tinha proposto uma reportagem-documentário para a televisão sobre essa mulher, que conhecia desde que eu era criança. O produtor concordou com minha proposta, insistindo que o filme deveria seguir um padrão jornalístico, conferindo se a história dela era verdadeira ou não. Isso foi há quase 20 anos. Na época, eu era um rapaz bastante ingênuo ainda. Por isso não me envergonho do filme. Ignorei ele por um bom tempo, mas sei que foi fundamental para a minha carreira. Por ter ouvido as histórias dela inúmeras vezes, sempre com as mesmas palavras, os mesmos exemplos, da maneira como sempre repetimos as nossas histórias, senti que estava muito mais interessado em desconstruir esse discurso do que em fazer algo que seguisse o “padrão jornalístico”. Essas histórias incríveis sobre a experiência dela em Auschwitz, se fossem inventadas, seriam maravilhosas.

Tentei convencer o produtor de TV a deixar de lado essa ideia de investigação e dar espaço somente para as palavras da mulher, a história dela, deixando a cargo do espectador a decisão de acreditar ou não. Ele não concordou com isso, então fiz o meu trabalho, preparei um filme de TV convencional, de 50 minutos, e entreguei. Depois disso, assisti ao que gravei por dois anos, tentando ter uma ideia do que fazer com aquilo. O que surgiu é uma espécie de analogia entre a figura do diretor de cinema, que manipula o gravado, e a personagem, que manipula a sua história. Porém, isso que conto agora é uma reelaboração a posteriori. Para falar a verdade, queria muito ter agora essa mesma abordagem inovadora sem estar consciente disso, como antes.

Pouco tempo atrás, tomei um café com uma amiga que trabalha na mesma universidade que eu, diretora e professora muito boa. Temos alguns alunos em comum, inclusive um cujo trabalho este ano foi um fracasso espetacular. Nesse dia, estávamos comentando o assunto, e ela disse: “É claro, o problema é que ele assistiu às obras completas de James Benning. Do contrário, não teria sido tão ruim.” Portanto, ele fracassou por conhecer muito bem o trabalho de Benning. Talvez tivesse fracassado de qualquer maneira, mas é diferente. Na época que gravei A esteticista, não tinha visto todos os filmes de Benning, e quando me deparei com o problema de não saber como dar continuidade ao filme, quando não sabia o que fazer, comecei a experimentar livremente com a edição. Eu era mais livre, permitia-me seguir a minha intuição. Queria me afastar o mais radicalmente possível de uma estrutura confortável, então comecei a brincar. Parecia interessante, mas ainda não sabia como transformar aquele material em um filme. Por um bom tempo, pensava nele como um experimento fracassado, mas mudei de ideia. Agora sei que foi um passo importante na minha carreira. É verdade, como você diz, que, no terceiro minuto, o filme mostra um ponto de virada. É como se fosse uma mudança nos meus interesses. Por outro lado, condenou-me à pobreza, e troquei um emprego confortável na televisão pela indigência típica de um documentarista espanhol. No entanto, você aprende algo de fundamental: não há fórmulas, em cada filme você experimenta uma forma por conta própria.

 

O cineasta Sergio Oksman

 

DD: Foi um processo de escrita a posteriori, que se desenvolveu durante a fase de edição.

SO: Com certeza. Além disso, pensei no quanto o início do filme me incomodava; eu me sentia prisioneiro das imagens que filmei. Só depois de um bom tempo comecei a ver aquelas imagens como algo estranho, como se tivessem sido encontradas, e essa foi a única maneira possível que achei para trabalhar nelas. E também, por estar no filme como personagem, precisei passar a me ver como um personagem, e não como eu mesmo. Eu me exponho bastante no filme. Dividir-me em dois, vendo-me como um personagem, foi algo tão importante que nem percebi o quanto me expunha. Num festival de cinema, lembro-me de que, depois de uma exibição, uma mulher da plateia, acho que dinamarquesa, disse: “Você parece ser uma pessoa decente, mas na verdade é um filho da puta.” Isso realmente me atingiu, pois não me enxergo nesse comentário; no filme, sou um personagem inventado, manipulado. As frases e palavras que se escutam foram gravadas num estágio posterior. Naquele momento, estava fazendo um experimento, o de me transformar num personagem. Se a heroína do filme falava dos experimentos de Mengele, por que eu não poderia me transformar numa espécie de Mengele? Portanto, dublei a voz do diretor (isto é, a minha), escolhendo palavras mais ríspidas, usando um tom mais autoritário, com o objetivo de enfatizar essas semelhanças.

Trata-se, então, de uma mentira. Assim como em O futebol, em que não sou o filho do personagem, embora tenhamos o mesmo sobrenome, e o personagem do pai não é meu pai. Pensando intuitivamente, eu desencadeei, com A esteticista, um processo de criação de personagens, inaugurado pelo diretor de cinema do filme. É uma obra de editor, pois foi na fase de edição que pude experimentar com essa forma radical. Por um longo período – como mencionei anteriormente –, o filme pode ter parecido um experimento metalinguístico, algo que considero muito entediante e datado, mas gostei de revê-lo um tempo atrás. Reconheço sua importância no meu desenvolvimento pessoal. Por anos, senti vergonha do filme, pelo o que ele mostra e revela. Tem uma cena (não lembro se foi incluída na versão final) na qual a mulher fala do suicídio da mãe, e dá para se escutar minha voz perguntando: “Você se incomodaria de repetir essa parte do suicídio da sua mãe?” Hoje em dia, eu nunca conseguiria fazer algo desse tipo; eu me tornei, ao mesmo tempo, alguém mais sensível e mais desumano. Naquela época, tudo isso era graças à ingenuidade juvenil e uma certa falta de direcionamento.

 

DD: Você é um árduo defensor da ideia de que, na fase da escrita, o personagem é construído; constrói-se como um ser ficcional, de alguma maneira. Isso remete ao trabalho de um romancista que escreve em primeira pessoa. Não estou pensando no filme como uma forma literária (seja lá o que podemos querer dizer com isso), mas refletindo na forma literária como uma metáfora poderosa ou um dispositivo cinematográfico. Por exemplo, Notas sobre o outro é todo sobre a construção de personagens, numa espécie de espiral de identidades ficcionais que remete a outro filme, Uma história para os Modlins.

SO: Tudo o que você disse tem muito que ver com a construção do eu. Quando trabalho num filme, passo mais tempo pensando no método de abordagem do que no “tema” do filme. Como fazer o filme? Como realizá-lo neste momento da minha vida? Como ter uma ideia, como abordar o tema? Afinal, meus filmes são passos deste “processo de aprendizagem”, o que parece algo bacana, mas que, na verdade, é muito trabalhoso. Eu queria ter tido os professores que lecionam na faculdade onde dou aula e alguém que me ensinasse o que se ensina aos nossos alunos: teria me poupado uns 20 anos. Eu aprendi fazendo, e continuo aprendendo. Além disso, costumo ser muito inseguro, ainda que agora seja menos, pois estou mais ciente dos limites da minha ignorância. Todo filme é, com certeza, a criação de personagens e uma encenação de mim mesmo. Em certo sentido, estou mais presente em Notas sobre o outro do que em O futebol, paradoxalmente, no sentido de que sinto que esses personagens são mais parecidos comigo.

Chegando neste ponto, gostaria de fazer uma digressão. Embora esteja descrevendo uma impostura, sou um impostor num sentido muito específico. Por exemplo, estamos numa entrevista, estou conversando com você. Chegamos ao ponto em que não sei se o que estou falando é resultado da minha reflexão ou uma montagem de uma série de frases e pensamentos de outras pessoas, como Carlos Muguiro, com quem trabalhei por anos, ou Emilio Tomé, o roteirista que trabalhou comigo em Uma história para os Modlins. Sinto-me um grande impostor nesse sentido, porque acredito ter certas qualidades, mas os filmes que faço não me representam por completo. Não sou esses filmes, eles são maiores do que eu, são o resultado do trabalho de mais de uma pessoa, e os créditos iniciais e finais não fazem jus a isso. Meus filmes também são dos outros envolvidos no projeto. Não estou dizendo isso por falsa modéstia, mas porque é verdade. Portanto, é difícil falar, sabendo que o que estou dizendo foi, na verdade, dito por outras pessoas. Em certo sentido, não sei até que ponto sou um bom diretor, se sou talentoso ou se sou simplesmente um bom produtor capaz de discernir, de entender que filme deve ser feito e quando um filme está pronto. Claro, esta é uma das tarefas específicas de um diretor – saber quando um filme pode ser considerado finalizado –, e uma das mais difíceis. Ao final, estou falando com você ciente de que estou construindo um personagem.

 

DD: Afinal, você está falando de uma prática que faz parte de nossa vida diária, uma vez que somos seres sociais, sempre conscientes dos vários papéis que interpretamos como atores sociais. Trabalhar com as diversas construções dos nossos personagens significa ser responsável também por isso.

SO: Lembrei-me recentemente de um episódio da minha infância. Quando eu era criança, fazia aulas de natação, e as primeiras não foram na piscina, mas fora d’água. Colocavam-nos em fila diante de uma parede e nos ensinavam a dar as braçadas. Lembrando-me desse episódio ontem à noite, pensei: “Caramba, esta é a imagem representativa do que eu faço: 40 anos tentando entender o amor, ser um diretor de cinema e um escritor, dando braçadas fora d’água!” Terrível, não?

 

DD: Talvez seja um pouco exagerado...

SO: Talvez, mas você precisa pular na água, Daniele!

 

Tradução de Antônio Xerxenesky