Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

A vida dos performers

19 de julho de 2023

(um melodrama)

Em 20 e 23 de julho, a Sessão Cinética apresenta no cinema do IMS Paulista o primeiro longa-metragem de Yvonne Rainer, uma das figuras mais importantes da história da dança do século XX, que decidiu, no auge de sua carreira como coreógrafa, migrar para o campo do cinema, se tornando cineasta. A obra de Rainer ocupa um lugar verdadeiramente singular da história do cinema de vanguarda americano, marcado pelo exercício de uma forma de escrita autobiográfica, desenvolvida no curso da politização da vida privada levada a cabo pelo movimento feminista.

A trajetória de Rainer tem como ponto central a criação do Judson Dance Theater, coletivo de dançarinos e coreógrafos que teria um papel fundamental no desenvolvimento da dança pós-moderna. As proposições coreográficas de Rainer se desdobravam a partir de problemas partilhados por artistas de sua geração de diferentes campos, nos quais reconhecemos uma certa sensibilidade minimalista: a procura por um modo de composição capaz de recusar a forma dramática, centrado em modos de ordenação modulares e contínuos, e a ênfase dada à presença literal do corpo posto em cena, em oposição à sua codificação expressiva. As preocupações de Rainer são facilmente reconhecíveis em um conjunto de filmes realizados no período, que costumamos chamar, por comodidade, de cinema estrutural. Os filmes de artistas como Michael Snow, Ernie Gehr, Hollis Frampton, Paul Sharits e Joyce Wieland realizados nos anos 1960 e 1970 também estavam à procura de uma forma capaz de recusar a composição dramática e expressiva, obtida por modulações contínuas e repetições modulares de seus materiais.

A incursão de Yvonne Rainer no cinema poderia ter sido apenas um desenvolvimento de suas preocupações iniciais na dança para um novo território. O cinema estrutural se encontrava, por ocasião de seu primeiro longa-metragem, consagrado pela crítica. Os primeiros filmes de Rainer, realizados para serem projetados durante seus espetáculos de dança, mostravam, sem dúvida, suas afinidades com a sensibilidade cinematográfica do momento: os seus primeiros experimentos são uma série de exercícios para e com a câmera, encarnados por gestos performáticos simples e literais e parâmetros cênicos definidos e declarados. O primeiro filme para cinema de Rainer é marcado, contudo, por um desejo de reintrodução da narrativa na tradição da vanguarda americana, que o cinema estrutural havia posto deliberadamente de lado. A vida dos performers é, como anuncia entre parêntesis a cartela inicial com o título do filme, um melodrama. A migração de Rainer para o campo do cinema foi motivada, diz a artista, pelo desejo de lidar com a “vida emocional”, de uma forma que não acreditava ser possível realizar na dança, campo do qual se manteria afastada por cerca de três décadas, período em que realizou os seus sete longas-metragens. O cinema de Rainer trata, contudo, a “vida emocional” menos como uma realidade interior a ser expressa do que um material a ser constantemente elaborado, por métodos de construção cênica e narrativa experimentais que desdobram sua orientação inicial minimalista.

 

Cena de A vida dos performers, de Yvonne Rainer

 

A vida dos performers é composto de cerca de uma dúzia de segmentos, em que vemos um grupo de dançarinos conduzindo suas vidas sexuais e amorosas em meio a ensaios de dança. Os personagens possuem os mesmos nomes dos seus atores, que são performers colaboradores de Rainer. Ela própria pode ser vista e ouvida durante o filme. A vida dos performers pretende encenar uma certa coletividade, cujos gestos, coreografados ou não, são documentados atentamente pela fotografia sóbria e delicada do filme, assinada por Babette Mangolte. O melodrama se centra na história de duas mulheres, Shirley (Shirley Soffer) e Valda (Valda Setterfield), e de um homem que não consegue se decidir entre elas, Fernando (Fernando Torm). Falar em centro aqui é, contudo, um pouco inadequado. O filme é, na verdade, uma colagem de segmentos heterogêneos e dispersos, que possuem individualmente sua própria lógica cênica. O retorno da narratividade não significa aqui o retorno da transparência fílmica. O melodrama de Rainer faz vista grossa para a maior parte das convenções que fundam a ficção cinematográfica como um mundo selado do espectador: a distinção entre ator e personagem; a sincronização entre som e imagem; a separação entre cenografia e set de filmagem; a construção naturalista e expressiva do trabalho de ator; a manutenção de um registro estilístico coerente entre o todo e as partes. A ficção melodramática se desenvolve precariamente sobre um material diverso, que aponta para muitas direções: documentação dos ensaios; encenação de performances; paródias de filmes da história do cinema; cartelas de intertítulos; falas improvisadas e roteirizadas; gargalhadas captadas no set; fragmentos reais e ficcionais de livros, memórias, sonho e carta.

O melodrama é o gênero em que historicamente a vida sentimental da classe média, com seus conflitos amorosos e familiares privados, é posta em cena. Os sentimentos banais da vida da classe média, que não exibem a nobreza própria da tragédia nem a seriedade do drama, encontram no melodrama uma grandeza ostensivamente declarada, que aprendemos a classificar como teatral e excessiva. O melodrama é também o gênero cinematográfico em que tradicionalmente o sofrimento feminino é, ao mesmo tempo, elaborado e naturalizado. “O clichê”, diz uma cartela no começo do filme, é “a mais pura arte da inteligibilidade; ele nos tenta com a possibilidade de encerrar a vida dentro de fórmulas belamente inalteráveis”. A vida dos performers adota uma postura ambivalente sobre os clichês do gênero. O melodrama é tomado como um conjunto de fórmulas sexistas a serem expostas e desarticuladas por meio de uma apropriação irônica; ao mesmo tempo, o melodramático é um modo privilegiado no qual a vida sentimental pode ganhar voz e legitimidade. O filme nutre um profundo interesse pela vida dos sentimentos, deseja deixá-los falar, fazê-los aparecer em suas próprias complicações e confusões internas, apostando que o ato de pôr em palavras o que se sente é parte do processo de subjetivação política.

A representação da vida sentimental em Yvonne Rainer é sempre pessoal e íntima, sem ser, contudo, privada. A história de conflitos amorosos que o filme narra se desenvolve em um mundo social com suas normas de gênero e seus códigos emocionais definidos, no qual os personagens estão sempre em disputa sobre como o outro o vê e como desejam ser vistos. “Eu não sei como eu vim parar nessa categoria, mas estou presa em sua bela caixinha, rotulada de emocional, infantil, carente, chata, indisciplinada, inintelectual”, confessa uma das duas mulheres para a outra, em uma carta. “Você aparentemente está em uma caixinha igualmente falsa, rotulada de madura, controlada, justa, disciplinada”, diz para ela. A “filha/mãe” e a “amiga/irmã”, completa, resumindo as figuras femininas a que são submetidas pelo olhar do homem com que ambas se relacionam. Os melodramas sempre souberam que as relações amorosas representam em nosso mundo a possibilidade de construir uma vida verdadeiramente livre e, ao mesmo tempo, são um terreno em que não conseguimos deixar de acumular frustrações, que não cansamos de nos descobrir alienados em formas reificadas de relação, na qual não nos reconhecemos mais. A vida dos performers é um retrato delicado das angústias das relações heterossexuais no processo tortuoso de sua elaboração na linguagem.