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Entre Shakespeare e o psicodrama

08 de julho de 2021

Com o singelo título Anna, está em cartaz nos cinemas um dos filmes brasileiros mais interessantes da última safra, ou melhor, da penúltima, pois foi feito em 2019 e só agora chega às telas. É o sétimo longa-metragem de Heitor Dhalia e trata, resumidamente, dos bastidores de uma montagem da tragédia Hamlet, de Shakespeare, nos dias de hoje em São Paulo.

 

 

No centro de tudo está o relacionamento tenso entre o diretor do grupo, o veterano e consagrado Arthur (o argentino Boy Olmi), e Anna (Bela Leindecker), a jovem atriz escolhida para encarnar Ofélia, a infeliz adolescente apaixonada pelo não menos infeliz príncipe da Dinamarca.

Se a conduta do diretor com os componentes do grupo força os limites entre a exigência profissional e o abuso de autoridade, em seu trato com Anna o problema se potencializa com o acréscimo da tensão erótico-amorosa. Difícil saber onde termina a admiração artística e começa a sedução, e onde termina a sedução e começa a opressão pura e simples.

Como costuma acontecer em filmes centrados na encenação de uma peça clássica (mais ainda com Shakespeare), há um diálogo oculto, uma reverberação recíproca entre o texto original e o ambiente da montagem. No caso de Anna, o diretor Arthur realça essa correlação quando diz à jovem atriz que a posição de Ofélia diante de Hamlet é de submissão da menina pobre e simplória diante de um príncipe, um ser social e intelectualmente superior a ela. Parece julgar que essa assimetria é análoga à da sua própria relação com a provinciana Anna.

Mas nada é tão simples e mecânico. Personagens secundários, situações diversas no palco ou fora dele e referências eventuais a outras obras de Shakespeare (de Romeu e Julieta a Ricardo 3º) tornam tudo mais complexo e estimulante.

 

Fundo e figura

Por um lado, Anna se conecta com o que se poderia chamar de meta-adaptações de obras teatrais, ou seja, filmes cujo foco é o processo de transposição de grandes clássicos para a situação contemporânea. São, em geral, documentários: Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, Ricardo 3º, de Al Pacino, César deve morrer, de Paolo e Vittorio Taviani, Moscou, de Eduardo Coutinho.

Mas Anna é um filme de ficção, e seu núcleo é o explosivo jogo de dominação entre um diretor e uma atriz. Até por seus desdobramentos tenuemente sadomasoquistas, uma referência aqui poderia ser A pele de Vênus, de Roman Polanksi, só que sem a mesma concentração dramática. Nos dois casos, trata-se de uma cambiante relação homem-mulher, ainda que a gangorra de Polanski seja um brinquedo muito mais radical.

 

Cena de Anna, de Heitor Dhalia (Divulgação)

 

Nesse equilíbrio de fundo (o grupo, a montagem) e figura (o caso Arthur-Anna), o filme de Heitor Dhalia oscila entre a grandeza de Shakespeare e um psicodrama mais convencional, não desprovido de clichês. Talvez seja inevitável: nossa circunstância é mesmo muito mais prosaica. E, em alguns momentos, mesmo o grande diretor Arthur parece achar que uma atuação intensa se confunde com gritos mais e mais histéricos. O pessoal de teatro talvez identifique no personagem figuras e comportamentos conhecidos.

 

Teatro e cinema

Curiosamente, há no filme duas referências laterais a diretores que trafegaram entre o teatro e o cinema: David Mamet, autor do livro Teatro, do qual Arthur extrai uma citação para impressionar a impressionável Anna; e Ingmar Bergman, presença central no livro de memórias de Liv Ullmann que um colega presenteia à jovem atriz, chamando a atenção para o paralelo entre os pares Bergman/Ullmann e Arthur/Anna.

Heitor Dhalia filma com elegância e precisão, aproveitando muito bem o espaço do palco e da plateia, a coreografia dos corpos e o jogo de luzes. Não há um único momento desinteressante ou frouxo em Anna.

Se há alguns senões, eles se referem a uma certa desigualdade de atuações e, principalmente, à caracterização um tanto monolítica, unilateral, do diretor Arthur, que parece querer se impor sempre e unicamente pela inteligência e pela agressividade. Talvez convencesse mais como sedutor se mostrasse mais nuances, vulnerabilidades, humor e jogo de cintura. Chega a ser surpreendente que só uma atriz do grupo (Nash Laila) se revolte contra seus abusos autoritários.

Mas são reparos menores, que não tiram o brilho e o interesse da empreitada, certamente o trabalho mais maduro do diretor até agora.