Com todos os seus problemas e limitações, as plataformas de streaming cumprem às vezes o papel dos antigos cineclubes junto a novos e antigos cinéfilos. Agora, por exemplo, elas possibilitam revisitar os primórdios da arte de dois gigantes do cinema italiano e mundial, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini.
À primeira vista parece não haver dois cineastas mais dessemelhantes na temática e no estilo, mas um exame dos primeiros filmes de um e outro revela, a par das diferenças óbvias, algumas curiosas afinidades. Não eram criadores assim tão distantes, nem no plano pessoal nem no artístico.
Cultura popular
O primeiro voo “solo” de Fellini, Abismo de um sonho (Lo sceicco bianco, 1952), por exemplo, parte de um argumento de Antonioni, que três anos antes havia realizado o curta documental L’amorosa menzogna (A amorosa mentira), sobre a febre italiana das fotonovelas românticas, chamadas por ele de “cinema de bolso”.
No filme de Fellini, disponível no Belas Artes à la carte, um casal do interior vai passar a lua de mel em Roma, mas a jovem esposa (Wanda Giardino Cavalli) sai ao encontro de seu ídolo, um galã de fotonovelas (Alberto Sordi), deixando o marido aturdido na grande cidade. A história é tão boa que foi reciclada por Woody Allen em Para Roma com amor (2012).
Nascido de uma ideia de Antonioni, o filme, entretanto, é puro Fellini, explorando com lirismo e comicidade o rico imaginário da cultura popular e seus desencontros com a vida prosaica de seres à margem. De quebra, nele aparece pela primeira vez a personagem da cândida prostituta Cabiria (Giulietta Masina), que seria protagonista de uma das obras mais célebres do diretor (Noites de Cabiria, 1957).
Fellini e Antonioni estariam juntos de novo no ano seguinte, 1953, cada um dirigindo um segmento do longa-metragem coletivo Amores na cidade (disponível na Mubi e na Amazon Prime sob o título idiota Retalhos da vida).
Superação do neorrealismo
Concebido pelo grande ideólogo do neorrealismo Cesare Zavattini, trata-se de um filme semidocumental, com pessoas comuns vivendo seu próprio papel. O episódio felliniano é um drama cômico que gira em torno de uma agência matrimonial. O de Antonioni reúne personagens que tentaram o suicídio das mais variadas maneiras. São homens e sobretudo mulheres de um mundo social de penúria, geralmente ausentes de seus filmes mais famosos, centrados em membros da elite, artistas ou intelectuais de classe média.
Os segmentos restantes são dirigidos por outros cineastas importantes, como Dino Risi, Carlo Lizzani e Alberto Lattuada, co-diretor do longa de estreia de Fellini, Mulheres e luzes (1950). Vale muito a pena conhecer ou rever essa curiosa coletânea, que marca um ponto de inflexão entre o neorrealismo em declínio e a obra de herdeiros que iriam revitalizá-lo e ao mesmo tempo superá-lo. Está disponível na Mubi e no Amazon Prime.
No mesmo ano de 1953, Antonioni deu ao mundo dois longas-metragens notáveis, A dama sem camélias e Os vencidos, ambos em cartaz na Mubi. O primeiro é o drama de uma jovem aspirante a atriz (Lucia Bosè) que tem sua carreira abortada pelo produtor machista com quem se casa. Reencontramos ali o tema da bela mulher aprisionada em seu papel de objeto do poder masculino, já presente no primeiro longa do diretor, Crônica de um amor (1950, estrelado pela mesma Lucia Bosè), e recorrente em sua filmografia.
Vocação cosmopolita
Os vencidos, por sua vez, atesta a vocação cosmopolita de Antonioni, com cada uma de suas três partes independentes ambientada num país: França, Itália e Inglaterra. São, na realidade, três curtas que apontam para linhas de força exploradas e lapidadas na filmografia posterior do diretor. Todos lidam com assassinatos cometidos por jovens de classe média inconformados com o tédio e a mediocridade de suas vidas.
O episódio francês, filmado com uma fluência e um frescor que antecipam a Nouvelle Vague e prenunciam uma obra-prima como Blow-up, mostra a conspiração de um grupo de garotas e rapazes que tramam o assassinato de um de seus colegas, equivocadamente julgado milionário por eles. O segmento italiano é quase um melodrama sobre um jovem (Franco Interlenghi) que sai de casa escondido dos pais para participar de um contrabando e acaba cometendo um assassinato. O pequeno passo entre a aventura e o crime seria também um tema constante em Antonioni.
Por fim, o episódio ambientado em Londres e arredores presta tributo a Hitchcock no uso do suspense e de um perverso humor inglês ao contar a história de um aspirante a poeta (Peter Reynolds) que diz ao editor de um tabloide sensacionalista ter encontrado uma mulher morta num parque.
São, em suma, não apenas três relatos diferentes, mas três esplêndidos exercícios de estilo, cada um deles incorporando o espírito do tempo e do lugar em que foram realizados. O tema geral do gesto extremo para redimir uma vida ordinária é apresentado de forma documental num prólogo que soa espantosamente atual nesta nossa época em que a busca insana de notoriedade pode levar às piores atrocidades.
Talentos complementares
Em todos os filmes citados de Antonioni, qualquer que seja seu cenário geográfico e social, encontramos a mesma precisão dos enquadramentos, a mesma construção minuciosa do espaço, a mesma elegância dos movimentos de câmera, o mesmo balé de corpos e olhares que fizeram dele um dos grandes do cinema, revelando – ou escondendo – como poucos a vida interior de seus personagens. Já Fellini é caloroso ao extremo, com uma criatividade e uma intuição que transbordam da tela para a vida. Talvez os dois gênios sejam complementares.
Em tempo: Os vencidos está na Mubi e, com o título Epílogo de sangue, também no Amazon Prime. Os primeiríssimos longas de Antonioni (Crônica de um amor) e de Fellini (Mulheres e luzes, co-dirigido por Lattuada) estão disponíveis gratuitamente no YouTube, mas em cópias sofríveis, o primeiro com legendas em espanhol; o segundo, em português. Para quem tiver curiosidade, também o curta de Antonioni sobre fotonovelas (L’amorosa menzogna) está no YouTube, mas sem legendas.