Impossível não falar de Não olhe para cima. Para o bem ou para o mal, o filme de Adam McKay, em cartaz na Netflix, é o grande fenômeno deste final de ano. Nas redes sociais, nas conversas de boteco ou nos grupos de WhatsApp, parece que todo mundo se viu obrigado a emitir juízos peremptórios a respeito, alguns antes mesmo de tê-lo visto. De “filmaço” a “lixo”, todos os vereditos foram proferidos.
A primeira coisa que me ocorre dizer diante de tanto alarido é: calma, pessoal, é só uma comédia. Diz o provérbio espanhol que não se deve pedir peras ao olmo. No Brasil, há o saboroso “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Que não se espere de Não olhe para cima, portanto, a densidade de um Tarkovski ou a genialidade de um Kubrick. É só uma sátira ligeira, quase um besteirol político, mais ou menos como os especiais de fim de ano do Porta dos Fundos, sem que vá aqui nenhum juízo pejorativo. Ter isso em mente evitaria, a meu ver, boa parte dos equívocos em torno do filme.
A história narrada é, em princípio, muito simples: obscuros astrônomos do Michigan (Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence) detectam um corpo celeste gigantesco em rota de colisão com a terra, com toda a probabilidade de acabar com a vida no planeta. Eles tentam alertar as autoridades, em especial a presidente ultradireitista dos Estados Unidos (Meryl Streep), para a gravidade da situação, mas a estreiteza de pensamento, a ganância econômica e as conveniências políticas dificultam a devida tomada de atitudes.
Temas candentes
Uma comédia ácida e oportuna, portanto, pois os temas abordados ali – negacionismo, fake news, teorias da conspiração, hipertrofia das redes sociais, cultura do ódio, espetacularização da notícia, promiscuidade entre o público e o privado – estão na ordem do dia, mexendo com os nervos de todos nós, talvez até mais no Brasil do que no resto do mundo. Não por acaso, produziram-se inúmeros memes com paralelos entre personagens do filme e figuras conhecidas da vida pública brasileira. Isso explicaria, ao menos em parte, o calor do debate.
Por se tratar de uma sátira, não faz sentido censurar o filme ou o trabalho dos atores com adjetivos como “caricatural”, “superficial”, “inverossímil”. São qualidades constituintes desse tipo de obra. Não é uma tese de sociologia política, nem um tratado científico, nem tampouco um sério concorrente à Palma de Ouro em Cannes. É só uma comédia, repito. Diante disso, a pergunta que se deve fazer é outra: ela cumpre seu papel?
A resposta não é tão fácil como parece. O critério básico para avaliar uma comédia (desde que ela não sustente valores moralmente indefensáveis) é sua capacidade de divertir, de fazer rir. O problema é como medir isso. Se a plateia que lota um cinema gargalha em boa parte das cenas, podemos dizer que a comédia “funcionou”, cumpriu seu papel. Mas nas circunstâncias do streaming, de visualização individual ou em pequenos grupos, a situação se complica. O humor, além do mais, é uma questão extremamente subjetiva. O que tem graça para uns não tem para outros. Nos comentários sobre Não olhe para cima, uma pessoa diz que morreu de rir; outra, que não deu sequer um sorriso.
Por tudo isso, a comédia é o mais difícil dos gêneros. Passo então a usar a primeira pessoa, para dizer como o filme foi apreendido e fruído por mim. O que se segue é uma visão subjetiva, parcial, provisória, sem a veemência definitiva dos julgamentos que tenho lido e ouvido.
Confesso que me diverti, talvez por não ter previamente uma grande expectativa. O diretor Adam McKay, oriundo do programa de humor Saturday Night Live, tem se mostrado um cineasta mediano com um faro aguçado (os críticos chamariam de oportunismo) para temas polêmicos. Foi assim com A grande aposta e com Vice. Se estes ainda se prendiam a uma representação mais fincada no realismo e limitada pela plausibilidade, em Não olhe para cima McKay decide romper essas amarras e abraçar francamente a comédia.
Loucura pouca
Desbastado assim o terreno, duas ordens de críticas que têm surgido me parecem pertinentes. A primeira diz respeito a uma certa trava ou timidez que impede o filme de assumir abertamente o absurdo e o desvario (coisa que talvez só ocorra nas duas cenas pós-créditos finais). O contrário, portanto, das críticas que apontam superficialidade, caricatura e inverossimilhança como defeitos. Para entender melhor este ponto, pense-se por exemplo numa comédia como Marte ataca!, de Tim Burton, que tem muitos pontos temáticos em comum com Não olhe para cima, mas que está pouco se lixando para o realismo, a lógica científica e outros estorvos ao humor e à imaginação.
A outra crítica cabível ao filme se refere a sua construção propriamente cinematográfica. Se, por um lado, ele exibe certa agilidade narrativa, e incorpora ocasionalmente em sua própria forma a sobreposição caótica de imagens e estímulos de nossa época, e a velocidade com que tudo vira espetáculo descartável, com a ilusória sensação de interatividade, por outro lado seu humor provém no mais das vezes das sacadas de roteiro, dos diálogos espertos ou da competência dos atores, e não de procedimentos essencialmente cinematográficos (enquadramento, tempo dos planos, montagem).
Um contraexemplo para tornar mais clara a última afirmação. Um humor cinematográfico por excelência é produzido quando, depois de um desabafo político do cientista vivido por DiCaprio num programa de televisão, a montagem corta para o astrônomo encapuzado dentro de um carro do FBI, repetindo a situação vivida por sua assistente algumas sequências antes. Isso não é teatro, não é literatura, é cinema.
Pena que sejam poucas as situações desse tipo e que a encenação e a montagem pareçam um tanto desleixadas ou aleatórias, talvez porque houvesse pressa em terminar o filme enquanto seus temas continuam quentes, ou então para dar tempo de lançá-lo no fim do ano.
Ao olhar do cinéfilo que tem em mente o repertório do que de melhor se produziu na comédia, de Buster Keaton a Tim Burton, passando por Leo McCarey, Jaques Tati, Billy Wilder, Blake Edwards, Woody Allen e Mario Monicelli, Não olhe para cima talvez não passe de uma obra descartável de segunda linha. Mas há que reconhecer seu mérito de ter enfeixado em chave cômica um punhado de inquietações contemporâneas. Em vista disso, tem o valor de sismógrafo, de termômetro ou, no mínimo, de sintoma de nossa época.