Dois filmes, ou ao menos duas ordens de exposição, convivem no documentário Apocalipse nos trópicos, de Petra Costa, que acaba de chegar à Netflix e continua em cartaz em cinemas pelo país afora.
De um lado, há uma investigação bastante sólida sobre o crescimento das igrejas evangélicas (sobretudo neopetencostais) no Brasil nas últimas décadas, sua infiltração na política e os perigos que isso traz para a laicidade do Estado. Em suma, o risco real de cairmos numa teocracia.
A par desse eixo, construído com base em dados e imagens muito bem captados, escolhidos e organizados, temos uma reflexão em primeira pessoa da diretora, buscando compreender o sentimento religioso e sua exacerbação – capaz de levar a cenas inimagináveis de fanatismo.
O ventríloquo Malafaia
Na investigação concreta, histórico-jornalística, ressalta a figura do famigerado pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, igreja que herdou de seu sogro e transformou numa potência internacional. O grande trunfo de Petra Costa nesse terreno foi o de ter penetrado até certo ponto na intimidade do pastor, que lhe franqueou acesso (com câmera e microfone) a sua casa, seu jatinho e até ao automóvel com que ele ameaça motoqueiros no trânsito caótico da metrópole.
Escrevi “até certo ponto” porque tudo, em Malafaia, remete à esfera do espetáculo, da encenação, do efeito dramático. Trata-se, antes de mais nada, de um showman, de um manipulador de mentes e corações, de quem nunca conheceremos a verdade íntima. Pelo menos não diante das câmeras.
Chegamos ao cerne político do documentário – a imbricação da visão de mundo neopetencostal com a ascensão da extrema direita – na cena em que, num palanque, Malafaia move os lábios sincronizadamente com o discurso exaltado de Jair Bolsonaro para uma multidão de eleitores/fiéis, mostrando com uma clareza estarrecedora que o ex-presidente repetia ali o que lhe havia sido ensinado pelo pastor e que ele havia decorado escrupulosamente. Quase como se o político fosse o boneco de ventríloquo do líder religioso.
O real a contrapelo
Essa faculdade de apanhar os personagens no contrapé, “em horinhas de descuido” como diria Guimarães Rosa, é um dos sortilégios específicos do cinema. Revelar o real a contrapelo, em sua crueza irredutível. Os melhores documentários conseguem isso.
Em contraponto ao desvelamento das relações promíscuas entre religião e política nas altas esferas (o Congresso, a presidência da República, o STF), há em Apocalipse nos trópicos uma tentativa de compreensão de como se dá a adesão dos crentes mais desvalidos ao discurso evangélico-direitista. É eloquente a cena em que, num casebre de periferia, uma dona de casa explica que vota em Bolsonaro porque Lula, embora tenha feito coisas boas, recebeu uma espada de Xangô, conforme ela viu num vídeo, e isso mostra que ele está do lado de Satanás.
Lidar com o irracional
Como lidar com esse grau de irracionalidade na compreensão da política sem cair no preconceito, no desânimo ou na derrisão? Essa angústia, essa perplexidade, que aliás é de toda a esquerda ou mesmo de todo o espectro democrático, está na base do segundo eixo do documentário, o questionamento que a diretora faz a si própria sobre sua capacidade pessoal de compreensão do sentimento religioso.
Ainda que legítimo por princípio – pois todo documentário moderno que se preze questiona e expõe sua própria visão do objeto abordado, seu “lugar de fala” –, esse discurso em primeira pessoa (marca registrada da cineasta) resvala ocasionalmente em arrazoados demasiado amplos e, por isso mesmo, frágeis. Afirmações grandiosas, universalizantes, sobre as relações da “humanidade” com a religiosidade, ilustradas por telas de Bosch e Bruegel sob música de Bach e Vivaldi, acabam por enfraquecer, aqui e ali, o que o filme tem de mais contundente a mostrar.
Mais modesta, terrena, e ao mesmo tempo mais substantiva é a constatação, pela diretora, de que o discurso timidamente reformista da esquerda não tem hoje, nem de longe, o poder de empolgar as massas ostentado pela mensagem evangélica e sua promessa de felicidade.
O fervor revolucionário parece ter mudado de lado. A ideologia neoliberal do “empreendedorismo” casa perfeitamente com a teologia da prosperidade. Contra esse monstro de duas cabeças, “todas las armas son buenas:/ piedras/ noches/ poemas”, como diz um poema de Paulo Leminski (sobre a luta de classes). Apocalipse nos trópicos não deixa de ser um dilacerado e vertiginoso poema.
Jean-Claude Bernardet
O franco-belga-brasileiro Jean-Claude Bernardet (1936-2025), que morreu na semana passada, foi uma figura central do cinema brasileiro, como crítico, roteirista, professor, ensaísta e ator. Inquieto, cambiante, parecia sempre querer desmontar o que havia construído e recomeçar do zero.
Todos os que tiveram em algum momento contato com Jean-Claude sentiram o impacto de sua energia, de sua inteligência, de sua paixão. Muitos já falaram sobre isso, não vou chover no molhado. Este blog comentou vários dos filmes em que ele atuou nos últimos anos: Fome, de Cristiano Burlan, Antes do fim, também de Burlan, e o metadocumentário A destruição de Bernardet, de Claudia Priscilla e Pedro Marques. A boa notícia é que Jean-Claude ressurgirá em breve nas telas, ao lado de Helena Ignez, no inédito Nosferatu, de Cristiano Burlan.
Chaplin em Brasília
Habituados às tenebrosas pantomimas do Congresso Nacional, os cinéfilos de Brasília têm agora a chance de mergulhar num dos tesouros mais preciosos e duradouros do cinema, a obra de Charles Chaplin. O Centro Cultural Banco do Brasil da capital federal exibe até 3 de agosto cerca de oitenta filmes, entre curtas, longas e médias do diretor/ator/roteirista/dançarino/mímico/compositor (programação no site do CCBB). A mostra inclui algumas exibições gratuitas ao ar livre, cursos e palestras. Quem perder merece um pontapé no traseiro.
