Argentina, 1985, de Santiago Mitre, em cartaz no Amazon Prime, cutuca o espectador brasileiro em dois pontos: o histórico-político e o cinematográfico. Ao longo deste texto tentarei explicar por quê.
O filme acompanha, em resumo, o trabalho do procurador Julio Strassera (Ricardo Darín) e sua equipe na coleta de provas e na elaboração da acusação contra os militares das juntas que governaram a Argentina com mãos de ferro (e sujas de sangue) entre 1976 e 1983.
Ao retratar o momento em que os argentinos começaram a acertar contas com as atrocidades cometidas por sua ditadura militar, Argentina, 1985 nos instiga a pensar na nossa impotência em empreender um processo semelhante por aqui. É verdade que a ditadura argentina foi mais sanguinária – isto é, matou e torturou mais gente –, mas a brasileira, que tampouco foi branda, durou mais tempo e deixou marcas profundas que não cicatrizaram até hoje.
Não cabe aqui entrar em detalhes sobre os contratempos, obstáculos e ameaças enfrentados por Strassera e seu pessoal, em sua maioria jovens recém-saídos da faculdade. Foi um período especialmente conturbado de uma história política marcada pela paixão e pela violência.
Terreno minado
O fato é que o diretor Santiago Mitre se serve desse substrato histórico e dramático para construir um thriller político eficiente, um pouco à maneira de Costa-Gavras, um pouco à maneira de seu compatriota Juan José Campanella. Não por acaso, Argentina, 1985 é o indicado do país para o Oscar, seguindo o exemplo de O segredo dos seus olhos (2009), de Campanella.
O que esses dois filmes têm em comum, além de serem protagonizados por Ricardo Darín? Essencialmente duas coisas que se combinam: uma abordagem adulta e matizada dos traumas políticos nacionais e a inserção disso em narrativas de entretenimento que manipulam habilmente recursos do cinema comercial norte-americano.
Vejamos Argentina, 1985 com mais atenção. Há ali um herói hesitante, Strassera, questionado pela mulher, pelos filhos e por um amigo mais velho e sábio (Ruso/Norman Briski). O filme nos leva à identificação com esse protagonista e suas dúvidas. Seguimos seus movimentos num terreno minado. Nunca sabemos o que são capazes de fazer os militares recém-depostos e seus asseclas (inclusive no aparato judicial).
Gêneros hollywoodianos
A partir dessa situação, Mitre põe em jogo elementos de vários gêneros hollywoodianos consagrados. Há um pouco de comédia, por exemplo, na sequência de recrutamento de possíveis membros da equipe do promotor. Quantas vezes não vimos cenas parecidas de entrevistas de seleção – de babás, de policiais, de qualquer coisa –, sempre com a mesma câmera fixa, montagem rápida, respostas breves, tipos físicos contrastantes, frases engraçadas?
O personagem do amigo veterano que dá conselhos, Ruso, também é um clássico em melodramas e policiais. Sua morte no meio da jornada do protagonista (como a de Malone/ Sean Connery em Os intocáveis, por exemplo) acrescenta densidade dramática e atiça a responsabilidade ética do herói.
Claro que tudo desemboca nas cenas de tribunal, com direito a relatos pungentes, duelos verbais e a catártica apoteose final. (E não vai aqui nenhum spoiler: todos sabemos que os principais generais ditadores argentinos foram parar na prisão).
Política e entretenimento
Argentina, 1985, em suma, manipula com eficácia regras de inúmeros gêneros: suspense, melodrama, comédia, filme de tribunal. Ainda que ocasionalmente resvale no clichê e que quase sempre abuse da música enfática, a seriedade da abordagem política não sai comprometida.
É essa alquimia que encanta um grande público e boa parte da crítica (Argentina, 1985 ganhou, por exemplo, o prêmio da Fipresci em Veneza), despertando certa inveja entre nós. Em geral, os filmes brasileiros que abordam diretamente a ditadura militar costumam cair numa certa simplificação maniqueísta, quase como adultos brincando de mocinho e bandido e proferindo discursos em vez de diálogos.
As exceções honrosas são as obras que abordam o período de modo enviesado e original, como Deslembro (2018), de Flávia Castro, Cara ou coroa (2012), de Ugo Giorgetti, Hoje (2011), de Tata Amaral, e O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, para citar alguns. Mas esses belos filmes não costumam chegar a um público tão amplo. Muitas vezes nem pretendem. Os argentinos ainda monopolizam a fórmula.