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O homem na multidão

15 de agosto de 2024

“E se O silêncio dos inocentes acontecesse num concerto de Taylor Swift?” Essa ideia aparentemente esdrúxula foi, de acordo com M. Night Shyamalan, o ponto de partida de seu novo filme, Armadilha. O resultado é um suspense exemplar, a mais hitchcockiana das obras do diretor indiano-americano.

O megaconcerto do filme não é de Taylor Swift, claro, mas da jovem estrela Lady Raven, vivida pela filha do cineasta, Saleka Shyamalan, que compôs e interpreta todas as canções. Mais da metade da narrativa se passa dentro da enorme arena onde ocorre o evento. É ali que acompanhamos a relação terna – e progressivamente tensa – entre o bombeiro Cooper (Josh Hartnett), e sua filha adolescente Riley (Ariel Donoghue).

 

O ambiente e a mente

Em meio à excitação e ao alarido do ambiente, somos levados a assumir o ponto de vista de Cooper, cuja atenção se volta para detalhes inquietantes: um número excessivo de policiais, pessoas sendo detidas de modo aparentemente aleatório, câmeras de vigilância por toda parte, saídas bloqueadas. Logo ficamos sabendo que a polícia montou um esquema para prender ali um perigoso e sádico serial killer – a tal armadilha do título.

Mas é possível ver o próprio filme como uma armadilha para capturar o espectador, manipulando seu olhar e suas emoções. É aqui que entra Hitchcock. Tudo se resume ao controle do tempo e do ponto de vista. A longa sequência na arena, incluindo o pré e o pós-show, é uma meticulosa viagem por ambientes – plateia, bar, banheiro, palco, backstage, corredores, camarim – e também pela mente do protagonista.

Nenhuma tomada é supérflua, nenhum plano é decorativo: cada imagem e som cumpre seu papel num mecanismo implacável de criação de suspense e expectativa. Como costuma acontecer nos filmes do cineasta, a loucura do indivíduo dialoga estranhamente com a loucura do mundo.

O modo como Shyamalan orquestra a imbricação entre personagem e ambiente faz lembrar outras sequências memoráveis desenroladas em auditórios com grande público, como a do atentado frustrado no concerto no Albert Hall de O homem que sabia demais (Hitchcock, 1956) e a do assassinato durante a luta de boxe em Atlantic City em Olhos de serpente (Brian De Palma, 1998).

O espectador interessado em encontrar inconsistências e inverossimilhanças terá aqui um prato cheio, a começar pela agilidade mental sobre-humana do protagonista. Do mesmo modo, os críticos que sempre valorizam a “profundidade” psicológica, sociológica ou moral apontarão a fragilidade da explicação para o comportamento do personagem.

 

Profundidade e superfície

Ocorre que a profundidade do cinema é de outra ordem. Está, paradoxalmente, na superfície, na imagem dos seres, dos objetos e dos lugares – e no modo como tudo isso é manipulado na montagem. Muito mais do que nas explicações verbais.

Examinada em si mesma, a psicologia pseudofreudiana de Armadilha é pueril, assim como era a de O segredo da porta fechada (Fritz Lang, 1947) e de tantas obras-primas de Hitchcock, como Psicose (principal referência aqui), Pacto sinistro e Sob o signo de Capricórnio. É pouco mais que um pretexto para desencadear a ação.

Shyamalan parece ter consciência disso. Quando o espectador começa a achar que o diretor exagerou na inteligência sobrenatural do protagonista e na quantidade de plot twists, vem uma piada final na sequência dos créditos para desanuviar a tensão e lembrar que é tudo um jogo, uma brincadeira, um espetáculo – e assim ficamos livres daquela diabólica armadilha.

 

O diabo na rua

Grande sertão: veredas é mesmo uma obra inesgotável. Meros dois meses depois de Grande sertão, de Guel Arraes, agora chega aos cinemas O diabo na rua no meio do redemunho, a versão de Bia Lessa. Não poderia haver dois filmes mais diferentes entre si.

Se a ousadia de Guel Arraes foi a de trazer a trama e os personagens do livro para um ambiente urbano-futurista, a de Bia Lessa consistiu em romper os limites entre literatura, teatro, dança e cinema. Concebido inicialmente para o palco, O diabo na rua... mantém e até amplia seu impacto poético na tela grande.

Caio Blat repete aqui o papel de Riobaldo, contracenando com Luiza Lemmertz como Diadorim, enquanto Luísa Arraes interpreta diversos papéis, incluindo Nhorinhá e o próprio Riobaldo menino. Os principais episódios do livro são encenados numa espécie de palco infinito, que sugere as diversas paisagens por meio da iluminação e da sonoplastia. Um elenco excepcional faz viver com seus corpos não apenas homens e mulheres, mas também cavalos, bois, aves e peixes.

Há momentos de grande poesia visual – como o funeral de Medeiro Vaz, a tentativa de travessia do Liso do Sussuarão, o culto à santinha milagreira, um monólogo solitário de Riobaldo à beira do rio – transposta ao cinema com sensibilidade e competência pelo diretor de fotografia José Roberto Eliezer.

Contando com esse, já são três os longas-metragens inspirados no livro de Guimarães Rosa (houve em 1965 a versão dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira), além de uma série de TV dirigida por Walter Avancini em 1985. E nada impede que venham outras tentativas.