Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Arquivos, vídeos e feminismos

20 de julho de 2023

O acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir

A mostra Arquivos, vídeos e feminismos fica em cartaz no IMS Paulista ao longo do segundo semestre de 2023.


 

Nenhuma imagem da TELEVISÃO pode nos representar, é com o vídeo que nós contaremos nossas histórias.

 

Presente nos créditos de fim de Maso e Miso vão de barco, realizado por Delphine Seyrig, Carole Roussopoulos, Ioana Wieder e Nadja Ringart em 1976, a frase exprime um desejo central dos coletivos feministas de vídeo na França ao longo dos anos 1970: a completa independência para registrar a própria história. A partir desse gesto emancipatório, que coincide com a emergência dos equipamentos de gravação de imagem e som portáteis em vídeo no final dos anos 1960, surgem alguns coletivos de realização, cujo objetivo era registrar os diversos movimentos sociais que marcaram o período, não apenas na França, mas em outros países.

Esta mostra tem por objetivo exibir algumas dessas lutas, com um enfoque particular em vídeos sobre temáticas feministas, a partir do acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir em Paris (CaSdB). Arquivo audiovisual feminista situado em Paris, o CaSdB foi fundado em 1982 por três militantes e realizadoras: Delphine Seyrig, Carole Roussoupolos e Ioana Wieder. Em um contexto político favorável após a eleição de François Mitterrand à presidência do país e conscientes da fragilidade dos suportes em vídeo e da importância de preservar o que haviam registrado na década anterior, elas resolveram lançar as bases de um arquivo, que atuaria também como produtora e distribuidora de filmes, além de organizar projeções periódicas. Fechado por razões financeiras em 1992, o CaSdB retomou suas atividades no início dos anos 2000, e, às suas missões já existentes, se juntaram a realização de ateliês e formações para sensibilização a estereótipos de gênero (o projeto Genrimages) e a organização de projeções seguidas de debate em casas de detenção, que também privilegiam filmes com personagens femininas proeminentes e homens que não correspondem a modelos binários.

No final dos anos 1960, Carole Roussopoulos foi uma das primeiras pessoas na França a adquirir um equipamento de vídeo portátil. Nos anos 1970, Delphine Seyrig, atriz conhecida por filmes como O ano passado em Marienbad e Muriel (ambos dirigidos por Alain Resnais), passa a se afastar paulatinamente desse papel de objeto do olhar masculino, escolhendo trabalhar com realizadoras como Chantal Akerman (Jeanne Dielman) ou Liliane de Kermadec (Aloïse). A partir dessa década, ela se vale de sua notoriedade para publicizar debates, como a legalização do aborto ou a libertação de presas políticas, como quando realizou em 1975 o filme Inês, a partir da história de Inês Etienne Romeu, militante de esquerda presa e torturada durante a ditadura militar brasileira. Ou ainda para registrar os depoimentos de atrizes americanas e francesas sobre experiências sexistas no ambiente de trabalho, em Seja bela e cale a boca!, que será apresentado em versão restaurada. Essas trajetórias se cruzaram quando, em 1974, Delphine Seyrig e Ioana Wieder tocaram à porta de Carole Roussopoulos, que ministrava ateliês de realização em vídeo, para se formarem na prática. Em pouco tempo, nasce o coletivo Les Insoumuses (um jogo de palavras em francês entre insubmissas e musas), no qual elas dissecam as mais variadas formas de misoginia televisionada, como no filme Maso e Miso andam de barco.

Cena de Delphine e Carole, insubmusas, de Callisto McNulty

 

Serão também exibidos alguns filmes-chave do fundo histórico dos anos 1970, produzidos pelo coletivo Video Out, formado por Carole Roussopoulos e seu parceiro intelectual e companheiro Paul Roussopoulos, que mostram o interesse de ambos pelos mais diversos movimentos sociais que lhe são contemporâneos: o combate dos Panteras Negras (Genet parle d’Angela Davis) ou a emergência do movimento gay e lésbico na França (A FHAR – Frente Homossexual de Ação Revolucionária). E outros raros filmes de Carole já produzidos nos anos 1980 e 90, que prolongam seu gesto de escuta atenta e receptiva aos diversos tipos de vivências, como Profissão: ostreicultora e As trabalhadoras do mar, ou ainda um sensível retrato de um hospital que acolhe e cuida de pessoas em situação de rua (Os homens invisíveis).

Nos filmes propostos, o registro de testemunhos e vivências é consciente de sua importância para a transmissão da luta e da história feministas. Seja através de práticas de contrainformação bem-humoradas ou de vídeos institucionais, são obras que atuam como ponto de partida para o aprofundamento dos debates aos quais se propõem, não como um fim em si mesmas. A exibição dessas, que nada mais é do que uma continuidade da preservação dessas memórias, permite a descobertas das intersecções com o tempo presente, sem perder de vista seu contexto histórico. Conservar, no entendimento do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, é um verbo vivo e emancipatório por excelência.

 


 

Gostaria de agradecer à programadora Andrea Cals, por ter organizado a mostra Século XXI: mulheres, ação, que trouxe em 2018 a arquivista e ativista feminista e LGBT Nicole Fernández Ferrer (então diretora do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir e atualmente sua copresidente) e alguns dos filmes aqui propostos ao Brasil, incluindo uma passagem dessa programação pelo IMS Paulista. Para muitas, inclusive para mim, foi um primeiro encontro com essas obras e com as práticas desse arquivo, descoberta que foi fundamental para a realização desta mostra em 2023.

 

Conversa na abertura da mostra